quinta-feira, outubro 27, 2005

Uma foto, um filme e uma história


Com mais uma foto do álbum, a que não se considera relevante... e a crise continua.

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Dica cinematográfica: depois de muito tempo sem ver qualquer filme (o último no cinema foi Sin City), assisti hoje Wonderland. O roteiro é bom, boas performances e a trilha sonora é ótima!

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Vou contar a história de um embate. Um embate que não foi bem um embate, e acabou virando constrangimento:

O rapaz foi visitar o Sacre Coeur pela segunda vez. Quando moleque havia feito a peregrinação sem saber o que significava o lugar. Desta vez sabia que a igreja tinha um certo significado, tinha importância, mas ele foi basicamente porque era um ponto turístico famoso. Esta foi sua peregrinação. Nada de transcendental ou religiosa. Bom, de certa forma havia algo de religioso... uma sacralização dos marcos conhecidos por todos. Sua contribuição para o cartão postal. Era uma igreja, mas isso não era o mais importante - ainda que fosse católico.
Estava de sobretudo preto, calças jeans pretas, botas pretas. Cópia do passaporte no bolso da frente - nunca é demais se previnir contra os batedores de carteira que, como se sabe, sempre estão espreitando. A máquina fotográfica, nem boa nem ruim, no outro bolso do sobretudo - o que fica por dentro do forro, sobre o peito. Assim era fácil sacar rapidamente a câmera para bater uma foto e encondê-la novamente, sem chamar a atenção. Nada como aquele clichê das hordas de turistas japoneses. Gostava de se considerar um turista low-profile.
Em um banco da praça, na base da escadaria da igreja, viu que o céu começava a fechar. Nuvens pretas assomavam ameaçadoramente por trás da paisagem. Choveria logo - e muito. Ele estava decepcionado com a reforma que ocorria na fachada do prédio. A foto não sairia como esperava. Ao menos agora tinha um clima de apocalipse para dar um ar especial à coisa toda. Mas não tinha pressa nenhuma em procurar abrigo; de certa forma esperava molhar-se. Desejava até. Ficou esperando alguma coisa, que não sabia exatamente o quê, para se decidir a fotografar.
Na praça, dois ou três parisienses se dirigindo para o Metrô, alguns casais de turistas e uns mochileiros eslavos. Havia, contudo, uma figura interessante - que sabia que era interessante. Um clochard. Também de sobretudo - mas gasto. Claramente tinha mais de 60 anos e ostentava uma barba grisalha imponente e desgrenhada. Alimentava os pombos, que se amontoavam ao seu redor.
O rapaz então sacou a máquina, procurou não fazer movimentos chamativos e mirou. O clochard esperava por isso e levou as mãos ao rosto.
Mesmo há algumas dezenas de metros de distância, espalhando farelo de pão para as aves, o velho estava atento a tudo o que as pessoas faziam. Obviamente devia estar acostumado a ser considerado parte da paisagem turística, como os guardas do Palácio de Buckinham ou os punks que vagam na frente dos seus portões. Mesmo não gostando destes fotógrafos, fez do jogo de esconder-se contra a indiscrição, um ritual. Afinal, gostava de alimentar os pombos alí e não deixaria de fazê-lo por conta de voyeurs endinheirados. Mas no fundo apreciava ter que odiar a necessidade de se esconder. Fazia parte do mesmo ritual. Ao menos aos turistas ele não era invisível. Se esconder fazia, estranhamente, com que fosse ainda menos invisível para um tipo de ser humano.
O rapaz baixou a câmera e ficou constrangido. Fingiu que na verdade não queria tirar uma fotografia do clochard e sim da igreja que se erguia imponente atrás dele. Levantou-se do banco e foi a Montmatre olhar os artistas - estes sim, menos ariscos e dispostos a encantar os estrangeiros.
Alguns anos depois, na sala de espera de um dermatologista, viu entre as fotos que o médico tirava como hobby e que adornavam a sala, um barbudo clochard sorridente. Nunca mais voltou ao consultório.

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