sábado, novembro 28, 2015

Escutar, esperar e ler



Ainda que de vez em quando goste tanto de um livro que o leia de novo, isso não acontece com muita frequência, claro. E nunca tinha lido duas vezes um livro em uma semana. Mas esse livro, de que quero falar hoje, é especial.

Até menos de um mês atrás nem sequer o conhecia ou tinha ouvido falar, assim como ao seu autor, Jim Dogde – desses escritores americanos que cresceram nos 60 e que ainda teimam em impingir no mundo alguma cor e alguma esperança.

Ganhei o livro da minha querida amiga Karina, que o deu como combo junto a outro (o Flush da Virginia Woolf) e o recomendou muito, me assegurando que seria uma leitura “de uma sentada”: seria rápida e valeria a pena. Prometi que leria e fui enfrentar a vida nos dias seguintes.

E então passei dias bem complicados na semana passada. Muito trabalho, sim, mas também tive aquela tristeza meio irresistível de quando nos decepcionamos com o mundo. Então a Karina me disse novamente para ler o livro, que eu iria gostar.

E assim, um dia depois, numa manhã de domingo preguiçosa, tendo dormido mais do que o comum para fazer as pazes com a minha paixão pelas coisas, eu li. Na cama, deitado – e não sentado como recomendado. Mas valeu a pena mesmo assim.

Ah, esqueço de dizer qual é o livro, né? O livro chama Fup e conta a história de uma patinha meio desengonçada, bastante geniosa e que ainda não sabe voar; mas também de Miúdo, um moço grande fazedor de cercas e seu avô Jake, fazedor de um whiskey especial e de impropérios torrenciais. Ambos moradores de um desses cantinhos perdidos no mato americano, esquecidos pelo governo (aparentemente) e por Deus (talvez menos aparentemente). Pessoas simples que vivem aventuras que nunca chegariam a inspirar ou assombrar mais alguém não fosse a imaginação de algum escritor preocupado com as coisas pequenas.

A história é singela, como são as personagens, e como é a escrita. Ao final do livro a gente não pode não ter a impressão de que há uma mensagem muito importante sendo contada, mas de uma maneira tão simples que tudo o que aparece como significativo o é de forma franca e lindamente aberta, resistindo àquelas interpretações corretas e autorizadas. E acho que é isso mesmo o que o Jim Dodge gostaria, deixando o desfecho propositadamente mais fantástico, ao menos até que ficasse novamente mais claro, “em direção a alguma nova coerência” (p. 89).

E essa humildade e essa escrita despretensiosa cativam desde o primeiro momento. A simplicidade da vida de vovô Jake e Miúdo, personagens apaixonantes, nos chama atenção para a beleza da quietude, da possibilidade do escutar-se. E escutar também outras coisas.

Como todas as pessoas com a vida simples, elas percebem mais claramente o relacionamento que têm com as coisas, com os animais sobretudo – é assim que podemos entender a relação com o porco do mato Cerra-Dentes, apenas aparentemente o inimigo, destruidor das cercas feitas por Miúdo e matador do cão Patrão. Não surpreendentemente, Cerra-Dentes é intrépido e silencioso e, assim, tão imortal como o quase centenário Jake. Mas é sobretudo com Fup – essa patinha tão incrível, que aprende a voar renascendo, quando Miúdo realmente passa a ouvir – que podemos acompanhar esse diálogo com a natureza. Há, ao longo da narrativa, uma espécie de tensão vital vinda dessa relação, revelada na advertência do índio Sete Luas, amigo silencioso de Jake, que por “reverência ou desconfiança da linguagem” (p. 74), sabiamente lembra que tudo anseia por ser selvagem.

Aprendemos que podemos ouvir, mas que não precisamos explicar tudo. Aliás, talvez as explicações sejam enganadoras. Será que Fup era uma boa farejadora, quando saía com Miúdo nas expedições de domingo? É o vovô Jake, com a experiência que apenas a paciência da imortalidade confere a alguém, que lembra que “não havia necessidade de provar nada, que a maior parte das coisas fala por si mesma, mas que também não devia presumir que todos os seus raciocínios fossem necessariamente corretos. As razões das coisas, advertiu vovô, eram complicadas” (p. 67).

E talvez nos baste perceber que nos apressamos nas nossas conclusões e nos nossos julgamentos. É o mesmo Jake que pondera se, na verdade, Cerra-Dentes não estava, como inicialmente pensaram, de fato tentando matar Fup, naquele dia em que Miúdo a encontrou encolhida num buraco de cerca cheio de lama. Mas tentando salvá-la – assim como ela tentou poupar o porco, na mira da espingarda de Miúdo. Que seriam das nossas ações e nossas escolhas então? Que tipo de voo, que tipo de liberdade alcançaríamos, mesmo na realização da morte?

É a narrativa de uma linda história que pode se atrasar um pouco – porque se atrasando, como Fup fazia com Miúdo em suas rondas caçadoras, talvez boas coisas viessem e um porco do mato vivesse. Como seria bom também pausar de vez em quando. Como vovô Jake depois de se acidentar tentando ensinar Fup a voar: “Sentia-se fatigado. Tinha uma necessidade enorme de descansar. Andava levando porradas violentas ultimamente e precisava pensar no assunto, entender o que, com os diabos, andava acontecendo. Havia alguma coisa, isso era certo. Mas também tinha certeza de que provavelmente jamais entenderia o que era, e isso contribuía fortemente para que se sentisse exausto. Era um quebra-cabeça em que nem todas as peças cabiam. Sabia que era melhor acostumar-se com isso, se fosse levar a sério esse negócio de imortalidade” (pp. 84-85).

Ler (e reler) Fup, nesses dias, me fez pensar um pouco sobre essas pausas, esses mistérios, para escutar coisas. E pensar na beleza não da vida como deveria. Nem, tampouco, da vida como queremos – talvez o grande engano. Mas da vida como poderia.


As citações correspondem à edição em português de Fup, de Jim Dodge, publicado pela José Olympio em 2006 e traduzido por Melanie Laterman.


O maravilhoso desenho da Fup é da querida Karina Kuschnir, antropóloga e artista, minha amiga – que já tinha me desenhado uma Fup estatelada no chão e que agora fez mais novas versões para ilustrar este post tão feliz e tão importante pra mim.

sábado, novembro 21, 2015

Vida simples

A vida era tão mais simples.

Quando? Bem, a resposta está no tempo verbal da frase. Sempre tive a impressão que a vida ia complicando, complicando. Lembro do tempo da jovem adultice com certa nostalgia. E nessa época, lembrava da adolescência, achando que aí sim é que as coisas eram tranquilas (mesmo não parecendo, então). A exceção é justamente a adolescência. A infância, sim, que era boa, mas eu ansiava pelos anos balzaquianos - quando poderia, finalmente, fazer as coisas que queria. Tolice.

Ou pelo menos era assim que eu pensava. Na loucura dos que se deixam levar pela ilusão da felicidade esvanecente eu paro e penso "não vale a pena". Não é assim que vou fazer o começo do restante da minha vida (para torcer o bordão que todos conhecem e quase ninguém entende - mesmo tendo visto o filme, olha só!).

E é tão fácil se perder nessa vaga, tão esperada que torna-se quase inexorável. E sabe o que é pior? É que é mais fácil ainda que isso tudo seja confirmado, quando reagimos a isso de maneira intempestiva. Melhor deixar passar, claro. Mas é fácil falar.

O que me traz ao como. Como a vida era mais simples? Não sei. Mas suspeito que a resposta também esteja no tempo verbal. E esse nosso medo de que é tarde demais? Que o que começamos, começamos. Mas o que nessa altura do campeonato não fizemos, bem...

Mas o que de fato começamos, quando? Continuo começando. Continuo começando. E a beleza do que ainda está por vir me diz para não entrar na loucura dos que desistiram e que atraem a desistência.

Não é fácil. Mas aí chego na razão: porque somos nós que fazemos sentidos. E, no final das contas, é simples sim.

domingo, novembro 15, 2015

Um céu estrelado

Semana mais do que corrida, continuo adiando a recapitulação do hiato de 5 anos sem blog. Um pouquinho só mais de paciência, tá? Mas ao menos eu me lembrei de uma história que aconteceu nesse meio tempo! Já é alguma coisa, né?

A história é rapidinha, porque conto só o final dela. Depois posso contar o resto, quem sabe...

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Em 2013 fui na REA/ABANNE, que é o congresso do Norte-Nordeste-Equatorial de Antropologia. Foi em Boa Vista, RR. Lugar incrível, cheio de espaços esquisitíssimos, de cidade e mato - incrivelmente coexistentes, pra alguém de São Paulo: Ali do lado da avenida, um cais, com uns barquinhos, pra você ir para os igarapés deliciosos e nadar com a turma antropológica, fugir um pouco do calor.

Bom, dando um fast foward, fui com minha amiga Marisa (ex colega de Unicamp e professora na UFRR, que me abrigou lá), e minha amiga Sel (que agora tá na UNILA), pra Lethem, na Guiana. A viagem, de Boa Vista até lá, não é longe, mas um pouco demorada. Mas o lugar é lindo e vale muito a pena! A cidade parecia parada no tempo (coisa feia pra antropólogo dizer, né?), uma gracinha. Umas lojas indianas vende-tudo, umas casinhas, um posto de gasolina da década de 50, um pequeno aeroporto, uma lojinha de uma curandeira, uma padaria, mais umas lojinhas aleatórias, um maravilhoso mercado municipal todo de madeira onde comemos muitíssimo bem, e um barzinho, com guinness muito barata e gelada (quê, você acha que é possível tomar guinness na temperatura ambiente na Guiana?!). Tudo muito calmo, com algumas crianças nadando no rio, um pessoal sentado na varanda vendo a eternidade passar...

Mas o que eu me lembrei foi a viagem de volta. Queríamos voltar logo, para não dirigir de noite, mas o remédio que a Marisa pediu (pra dor de cabeça) demorou um pouco pra ficar pronto, na loja da curandeira-xamã local. A noite nos alcançou na metade do caminho, de uma estrada muito, muito esburacada, de volta ao Brasil.

Perdido por um, perdido por mil, é o que dizem, né? Pois bem. Paramos o carro na estrada (não é que tinha qualquer risco de alguém passar por ali naquela hora, naquele lugar, e nos abarroar), desligamos o farol (de novo, sem risco nenhum de vir algum carro desgovernado ali) e ficamos olhando o céu. O céu mais lindo da minha vida. Não sabia que era possível ver tantas estrelas. Longe de qualquer cidade, o negro acima de nossas cabeças mostra tantas luzes que parece mágico.

E ali, no meio do nada, entre a Guiana e o Brasil, só um pouquinho ao norte do equador, eu pude perceber como há um mundo, literalmente, que eu não conheço e do qual sei muito, muito pouco. Um mundo bonito, misterioso, alheio ao meu próprio quinhão cotidiano (por vezes doce, por vezes amargo), que vai continuar lá mesmo depois que eu voltar pra casa.

Em tempos tão duros, tão tristes, foi bom lembrar disso hoje. Quando eu começo a achar que as coisas estão cagadas demais, feias demais, é uma felicidade saber que a despeito das bombas, há lugares em que você consegue enxergar todo o firmamento e que lá a humanidade entra em perspectiva.

domingo, novembro 08, 2015

O Rio de Janeiro continua lindo, ou a promessa da recapitulação

Um pouquinho atrasado (de novo) e coisa rápida. Mas não queria deixar passar a ideia de um post por semana. Fica como um update.

Aliás, talvez os próximos posts sejam assim, até o mês que vem. Entro num regime meio insano de final de semestre, então o tempo, sempre ele, vai ficar um pouco curto. Mas ao mesmo tempo já entro naquela fase "vislumbrando a reta final"!

Um dos motivos por não ter escrito ontem foi que estava viajando de volta pra casa. Fui rapidinho pro Rio, lugar que adoro, mas que há alguns anos não ia. Sempre me sinto bem indo pra lá - e dessa vez não foi diferente. Fiz passeios muito bacanas, tive boas conversas de trabalho e encontrei pessoas queridas!

Como deve ter ficado subtendido pelo post da semana passada, tive que fazer alguns exames por conta de um desconforto constante nos últimos tempos - e que chegou naquele nível que não dava mais pra ignorar e empurrar com a barriga. Descobri que estou com refluxo (mais precisamente hérnia de hiato), algo muito chato realmente, mas que pelo jeito é tratável sem muito problema e que tem a estranha vantagem de me fazer tentar seguir um regime mais saudável. Aquele que os nutricionistas falam que a gente deveria fazer de qualquer maneira, sabe? Comer menos nas refeições, fazer lanches intermediários, comer menos fritura, jantar pouco e não dormir logo depois disso. Vamos ver, vai ser um pouco difícil refazer hábitos alimentares - como é mudar qualquer coisa cotidiana - mas a alternativa não é muito bacana, acredite.

E tenho uma boa nova. Mas que não vale a pena contar sem antes dar um pequeno resumo de algumas das coisas que aconteceram com a minha vidinha desde 2010, o último post da primeira fase, digamos assim, do blog. Então fica aqui pelo menos a promessa de que, quando conseguir, nas próximas semanas, faço um pequeno resumo dos últimos 5 anos, tudo bem? Coisa fácil, pá pum, easy peasy lemon squeezy, síntese é comigo mesmo!

(Na foto, a linda Lagoa Rodrigo de Freitas, durante passeio com minha amiga Karina. O dia estava nublado, mas sabe que eu até gosto do Rio assim também?)


domingo, novembro 01, 2015

Conversa de consultório

Post um pouco atrasado... era pra ter saído ontem. Eu já estava escrevendo toda uma crítica social espirituosa e um pouco apimentada. Mas resolvi que ia deixar guardado, o texto. Quem sabe depois... quem sabe nunca... tenho ficado cansado do embate tosco e polarizado.

Ao invés disso, um post mais breve, mais light. E um pouco estranho.

Tenho tido umas dores esquisitas ultimamente. Que me fizeram cortar o glúten (e agora, querendo cortar o leite, pra ver se ajuda) e, essa semana, fazer alguns exames meio que a contragosto. Um deles, uma endoscopia, me rendeu uma conversa que (não) tento contar mais adiante.

***

Lá fui eu, sexta cedinho, de jejum, no consultório de gastrologia. É incrível porque é uma verdadeira linha de produção, para um exame não tão simples. Espera na salinha com mesas com revistas de variedade, entra na outra salinha, deita de lado na maca, ganha agulha na mão, "ai, dói", toma um gás na fuça, apaga. Repete o processo com o próximo alguns minutinhos depois. Eu ganhei um baita de um hematoma na mão por conta dessa agilidade.

E aí acordo, talvez meia hora depois, não sei, não lembro, em outra salinha ainda, numa poltroninha reclinável, ao lado de outras pessoas desacordadas em suas poltroninhas reclináveis. Cena estranha, né? Também achei. Eu que não tenho lembrança nenhuma de ser carregado, como vi uma moça que estava chegando nesta terceira salinha ser. Ainda bem grogue, fiquei olhando para as outras 3 pessoas ali apagadas (uma enfermeira por duas vezes ficou chamando uma delas, ainda na maca, mas nada, nem um sinal, mesmo com uma sacudida). Estava tentando entender o que tinha acontecido. Nem nas piores bebedeiras eu fico sem me lembrar de nada.

Fiquei vendo as pessoas apagadas e uma outra moça, mais velha, que estava olhando sonolenta pros lados, como uma passageira de avião acordando depois de uma turbulência, ou depois das luzes se acenderem; e então tentar se localizar - justamente o que não dá pra fazer num avião em movimento. Você espera a familiaridade da sua cama, então demora um pouquinho pra perceber onde está. Não sei se é uma sensação necessariamente ruim, mas beira o surreal.

Dois minutinhos, a moça, já mais consciente, é levada para outra salinha (quantas salinhas existem?). Espero mais um pouco e logo uma enfermeira (será a mesma de antes?), que já percebeu que estou acordado, se aproxima, pega no meu braço e me leva dali.

Chego na mesma salinha (a quarta, se você não está contando) da moça que acabou de ser levada. Ela está sentada na frente de uma mesa, tomando chá e comendo bolachas. Começo a fazer o mesmo. O chá está bom, a bolacha também. Mas também, depois de horas de jejum de comida e bebida, qualquer coisa ia ser bem vinda!

E aí começa uma conversa estranha, devagar, arrastada. Os raciocínios ainda nublados, ainda acordando, tentando entrar em movimento. Falamos de nossos sintomas, claro. Por quê estamos ali? Não é por causa do chá - que está muito bom, por sinal. Falamos do stress da vida cotidiana. Seria inevitável chegar no assunto Cantareira ou na lama da crise nacional? Aquela conversa de reconhecimento de território nos não-lugares, de que fala o Augé? Dos shoppings e aeroportos, espaços de passagem em que as fronteiras sociais estão sendo justamente testadas e o ressentimento aflora?

Mas não. Descobrimos que gostamos de quadrinhos. Conversa vai e vem; algum tempo depois chega a enfermeira (será outra?), trazendo um rapaz, que deve ter acordado recentemente, que senta-se e pega seu copo de chá e sua cota de bolachas. A enfermeira então pergunta se estamos bem para irmos. -Só mais um pouco, já já. A conversa está boa, o chá não muito quente, não sei em que sala estou. Fight the power, resistimos ao sistema!

Foram ótimos - o que, 10 minutos? No final fomos levados para a sala da entrada (essa bem grande), fora do labirinto clínico. Me despedi da minha amiga, que nem sei o nome. "Boa sorte, heim?!", "Tchau!".

O problema é que eu não lembro do que falamos sobre os quadrinhos...