sexta-feira, maio 27, 2016

Um causo de infância

O ano era 1986, ou quem sabe 1987, não muito mais do que isso.

Fiquei décadas sem pensar sobre o assunto, mas ao mesmo tempo agora me lembro muito bem do acontecido. Também pudera, na época nada de muito inusual acontecia naquele pacato bairro universitário, então ainda mais cheio de terrenos baldios do que de casas, onde as pessoas não se davam o trabalho de fechar os portões e as crianças brincavam de rolimã na rua. Um assassinato misterioso inevitavelmente causaria uma forte impressão nos moradores dali.

Eu morava apenas a uma quadra de distância daquela casa - a segunda da esquina, com uma garagem que subia numa grande rampa saindo do nível da rua, e pintada de cores alegres e fortes (lembrança de uma educação liberal às crianças, estimuladas a decorar sua própria casa). Conhecia a vítima apenas de vista, mas era grande amigo de seu sobrinho - um filho de uma brasileira com um inglês, e que tinha nascido em Hong Kong, então colônia britânica - que morava ali perto também. Conta a história que ela morava só com o casal de filhos, depois que o marido, após uma viagem de negócios aos EUA resolveu que lá ficaria, com a namorada americana que conheceu e jurou amar até que dela também se separou não muito tempo depois.

Seja como for, a tragédia parecia iminente àquela família: o menino morreria em um acidente em uma cachoeira alguns meses depois; e da menina só se soube que resolvera se relacionar com um traficante e sumiu do mapa. O fato é que num certo dia encontraram-na - a mãe - morta em casa. Foi um grande choque para todo mundo, e por semanas conversas regadas a medo e teorias as mais delirantes correram de boca em boca, conferindo àquele momento um ar de novela de crimes policiais.

Nenhum sinal de luta. Não se soube com certeza se algo havia sido roubado. Com a exceção de uma calça, quer dizer. Souberam disso porque encontraram apenas as barras, cortadas e deixadas no quarto: o assassino fizera bermudas da calça da moça. Ele deixara suas próprias roupas (um terno marrom bem feito, que indicava se tratar de uma pessoa muito alta), escondidas atrás da máquina de lavar roupas, na área de serviço, ensanguentadas.

Um homem barbudo, de aparência distinta, mas então considerado desconhecido pelos vizinhos havia sido visto na frente da casa, naquele mesma noite (um estranho naquela época era facilmente notado pelos moradores, hábeis em controlar a vida alheia e imprimir um clima de cidade interiorana à região).

Investigações sobre sua identidade mostraram-se fracassadas. Mesmo quando um famoso médico legista (que anos depois teria sua carreira aniquilada por ter sido forçado a alterar um laudo de um caso célebre) pegara o caso e se comprometera a não deixar a investigação esmorecer, depois de meses não se chegou à nenhuma conclusão e a coisa esfriou. Ninguém havia sido sequer interrogado.

Mas corria à boca pequena, essa ferramenta odiosa da maledicência corriqueira, que um senhor, de nome de padre mas também de filósofo romano - Cícero - devia ser o malfeitor. Especulou-se que ele deveria ser o homem misterioso do terno marrom; apesar de à época do crime já ser conhecido naquelas bandas e andar sempre com roupas muito humildes. Afinal, dizia a enviesada lógica dos que precisam encaixar os fatos nas teorias, deveria ser por isso que não o reconheceram então: estava asseadamente e insolitamente trajado.

Não lembro se a fama já existia antes, mas contava-se que ele viera fugido do norte, onde acabou por ter ficado por demais notório por conta de sua ocupação original: matador de aluguel. Foram várias as mortes encomendadas, dizia-se. Perfil ideal para o crime que, se insolúvel na justiça deveria ser determinado, ilustrado e multiplicado pela sabedoria popular.

Esse bode expiatório da necessidade de atribuir culpa a monstros sinistros criados tinha a grande infelicidade de ter um olhar intenso, braços fortes e calejados pelo sol, proferir poucas palavras e adotar uma atitude sorumbática e silenciosa. Eu o conhecia bem: de vez em quando cuidava do jardim de casa, podando os galhos da primavera que crescia demais, ou cortando a grama quando esta ficava cheia de ervas daninhas.

Quando o boato começou a tomar a forma de uma potencial acusação, seo Cícero inteligentemente sumiu.

Lembrei dessa história porque soube que seo Cícero voltou para a região, depois de quase trinta anos. Deve ter mais de 80 anos agora, mas continua cortando galhos de árvore com incansável tenacidade. Do crime não soube se houve mais algum desdobramento. Provavelmente prescreveu e hoje continua apenas como lenda. Daquelas que para quem não a viveu tornou-se uma história para contar no escuro, para coleguinhas impressionáveis e amigos assustadiços.