sexta-feira, dezembro 30, 2016

Cultivando pequenezas

Acabei não escrevendo tanto aqui quanto gostaria esse ano. Vou tentar ser um pouco mais assíduo em 2017, até porque esse é um momento de escapar um pouco, desabafar um pouco, às vezes me divertir, tirar um pouco o peso da correria cotidiana. Falar de algo que pode não ter muita importância no grande esquema das coisas.

Nesses meses sem escrever muito eu acumulei algumas histórias da academia - algumas depois eu posso contar. Mas queria muito escrever algo ainda esse ano, e termina-lo com um post des-academizado (bem, talvez só um pouquinho de academia mais para o final - mas prometo que é algo secundário no texto). Também pensei em umas histórias engraçadinhas - mas hoje me sinto um pouco melancólico e me sentiria forçando a barra contando algo engraçado. Histórias mais leves para o ano que vem, ok?

Esse foi um ano muito difícil - disseram todo mundo. Cada um teve sua cota de angústias pessoais, mas todas alimentadas por um clima de descrença, de medo, ou mesmo de raiva generalizado. Coisas que parecem se materializar num desgosto do dia a dia.

Gosto muito do meu bairro, mas ele abriga também a pior elite metropolitana que existe atualmente. Gente que camufla (ou nem tanto, license to kill, license do spill) preconceitos através do hoje liberado e sancionado ódio à corrupção e ao banditismo institucionalizado. Gente que bateu panela, exercitou seu classismo, seu racismo e seu sexismo numa espécie de loucura coletiva e que agora, defenestrada a figura preferida de todos para malhar, precisa encontrar outro alvo para extravasar as frustrações que, surpresa surpresa, não acabaram num passe de mágica. Não que já não exercessem cotidianamente seus micro-poderes, mas agora vejo pessoas que continuam amarguradas, sem ter mais um bode expiatório para canalizar tanta energia. Algo que a história já cansou de nos mostrar, evidentemente (sempre existem grupos para perseguir, certo?).

Frequento uma padaria do lado de casa - e tive que dominar a habilidade de não prestar atenção naqueles tiozinhos brancos de classe média com seus carrões que gostam de tomar um pingado e achar que são root. Mas de vez em quando não dá para não escutar. E vejo eles exercitando um sadismo classista, sobretudo com as atendentes mais humildes que lhes servem café e pão na chapa. Fazendo piadas escrotas e sabendo que terão aquela risadinha amarela em deferimento a um poderzinho podre que faz de refém quem não se pode dar ao luxo de mandar pastar. "Sim, é isso mesmo doutor", "que engraçado, doutor", "é, aonde já se viu tanta sem vergonhice e roubalheira, doutor". Fórmulas centenárias de sujeição, de classe, de raça e de gênero. É um exercício do prazer da submissão formal às maiores barbaridades e opiniões reacionárias que sentem-se a vontade de proferir - mesmo que no fundo saibam que a outra pessoa pense "que babaca". Praticam sua escrotidão e depois deixam uma nota de dois reais na caixinha dos funcionários.

E não é só na padaria. Existem os butecos, onde o mesmo acontece, mas agora com garçons. É que buteco eu já não frequento mais, desde que a cerveja passou a me fazer mal.

E tem o clássico supermercado - outra zona intersticial, em que esses mundos se encontram - mas também em um ambiente controlado (quando as fronteiras ameaçam ruir, quando as pessoas teimam em não se conformar aos seus espaços ou aos seus papéis atribuídos, como nos rolezinhos, a maledicência e o policiamento entram em ação rapidamente). Ontem mesmo, presenciei triste uma mulher com sua Louis Vuitton a tira colo ameaçando falar com o gerente para despedir a caixa que apenas tinha falado que não a atenderia porque aquela fila era para compras de até 10 itens. O que leva alguém a não apenas esquecer sua cruzada anti-corrupção anunciada para quem quiser ouvir (com seus ídolos, judiciários), para reclamar sua distinção como alguém que na prática está acima dessas regras mortais, mas também aterrorizar alguém que provavelmente mora num bairro distante e tem que aturar essas coisas todos os dias, com um sorriso "que madame idiota"?

Sinto que, se esses micropoderes sempre existiram, eles se tornarão mais frequentes no futuro próximo. Mais frequentes e mais cruéis. É uma espécie de catarse mesquinha, de transferência de angústia. Do mesmo tipo presente na turba justiceira que gostaria de linchar dois assassinos (que, entretanto, agiram sem que ninguém interferisse). Ou do gozo sádico com as imagens de um ex-governador esperneando ao ser preso.

Mas é também em momentos como esses, em que temos que pesar e lamentar, que as pessoas mostram o que têm de melhor, por outro lado. Há dois dias uma querida professora, que tanto me ajudou, faleceu - apenas dois meses após o marido, que também foi meu professor. Suspeito que de tristeza. Dei e recebi abraços sinceros em quem foi ao cemitério se despedir; de quem se uniu para se confortar. E ouvi emocionado um dos fundadores do departamento do qual faço parte, que recebeu essa professora no primeiro ano do funcionamento desse departamento, se desculpar por alguns pensamentos confusos, mas guiados pela certeza de que esse casal que ajudou a criar algo do nada (literalmente, como atestam as fotografias de 45 anos atrás, de uma unicamp cheia de terra e mato) tinha que ser lembrado. Como tinha que ser lembrada a ideia que originou uma faculdade, possibilitada apenas por um companheirismo e uma colaboração verdadeira, em condições terríveis, no meio de uma ditadura - apenas com a vontade de criar algo bonito. Uma ideia para ser lembrada, celebrada e defendida.

Aqui estou eu, herdeiro dessa ideia. Assustado com o desmonte que se anuncia e já é sentido, a toque de caixa, alimentado por esse mesmo ódio e uma intransigência que busca culpados - preferencialmente naquilo que é público, de um bem comum, um cuidar comum, que agora é acusado de expropriar aquilo que já é privilégio de poucos, que virou, num discurso injusto e preguiçoso, algo confundido com assistencialismo e com ineficiência. Mas isso tudo só me dá a certeza de que lado devo estar, com quem quero estar abraçado, com quem quero continuar uma ideia tão bonita que se aproxima de uma metade de século agora. Mas também de outras coisas que valem a pena - os amores e as amizades.

Fiquei pensando muito, nesses dias, em algo que já tem uma profundidade histórica suficiente - e talvez ideal - para perceber como são pessoas reais que fazem algo maior do que elas. E acho que não precisa de muito para isso. Basta cultivar gentilezas e afetos no dia a dia, perceber que não é legal transferir frustrações aos outros - de ter consciência de quando se está fazendo isso e parar. A outros que podem ser conhecidos, mas sobretudo aos desconhecidos.

Hoje em dia me emociono com pouco. Com um motorista que pára o fluxo do trânsito para alguém passar. Com alguém que segura a porta do elevador. Com alguém que dá bom dia. Com as iniciativas e projetos de caridade.

Com aquilo que não cria ilhas.

Liçõeszinhas para 2017. Tentarei contar por aqui um pouco como as aprendo.