terça-feira, outubro 11, 2005

Crônica existencial?

Ivich corria ofegante. Tropeçava em galhos velhos espalhados no chão, em pedras, em pequenos montinhos de terra, sempre olhando por sobre o ombro esquerdo. Seu pescoço inexplicavelmente doía quando tentava virar a cabeça para o outro lado.

Sentia que algo estava cada vez mais perto. Mas o pouco que lhe restava de raciocínio fazia com que percebesse que se esse algo ou esse alguém quisesse realmente alcançá-la, certamente o faria. Apenas a provocava, caçoava sadicamente de sua inútil tentativa de fugir. Como se fosse um jogo cujo resultado não poderia ser outro que não o já estabelecido por seu perseguidor - o que, evidentemente, não impediria qualquer um na sua posição de tentar evitar.

Ou talvez não fosse assim. Talvez já estivesse alucinada e pensasse que raciocinava, mas na verdade era apenas um recurso desesperado de buscar esperança. Ele podia de fato não estar brincando com "sua comida", mas avançando inexoravelmente, devorando lentamente a distância que os separava para apanhá-la e então fazer não se sabe que horrores.

Este último pensamento fez com que se desse conta que de fato raciocinava. Mesmo com a possibilidade de estar equivocada.

"Pelo menos isso", disse para si mesma baixinho. O que não melhorava muito as coisas. Talvez fosse até melhor estar completamente anestesiada pelo pavor, reavaliou um instante depois.

Este mesmo fiapo de raciocínio, o que não era usado para mexer as pernas, desviar das árvores no caminho e tentar resistir à tentação de se encolher e chorar, teimava em evocar as memórias mais disparatadas. Ficou horrorizada quando se viu pensando em sorvete de macadamia da Häagen-Dazs e de uma viagem que fez a Barcelona há alguns anos. Estupidamente bizarro, nas atuais circunstâncias. Dentre as imagens estapafúrdias que desfilaram em sua mente naquele momento, lembrou de quando tudo começou. Ou pelo menos de quando percebeu que algo de ruim havia começado.

No que acreditava ter acontecido dois dias atrás, recebeu uma carta no seu apartamento. No remetente, estava escrito apenas "Boris". Seu próprio nome aparecia como a única informação no verso. Dentro do envelope havia apenas uma folha amarela com uma marca d'água de um sobrenome que não conhecia. Eslavo, pensou.

Antes mesmo de ler a mensagem, já havia evocado o romance de Sartre na sua cabeça. Afinal, nunca conheceu outra Ivich antes, nem mesmo um Boris. A reunião de ambos os nomes no misterioso envelope era por demais significativo para que deixasse de evocar o livro, que evidentemente conhecia bem. Afinal, era quase uma obrigação conhecê-lo.

Seus pais moraram na França durante a década de 1960 e Jean-Paul Sartre era um verdadeiro herói para ambos. Seu nome, Ivich, era uma referência à um dos mais conhecidos romances do francês, o primeiro da trilogia dos caminhos da liberdade.

Não poderia ser apenas coincidência receber uma carta de um Boris, desconhecido, também nome de outro protagonista do livro. Parou por um instante antes de começar a ler e se pôs a divagar sobre o estranho fato. Sentia-se ela mesma num romance, mas um do Umberto Eco. Será que o remetente se chamava mesmo Boris? Acaso seria alguma brincadeira? Duvidava que se tratasse de algo fortuito. As pessoas não associavam seu nome com um personagem literário. Apenas o achavam diferente. Nunca encontrou alguém que, ao saber como se chamava, perguntasse "como a do livro?"

As únicas linhas no papel eram apenas uma citação do romance: "o perfume de Ivich ainda flutuava. Respirou-o e reviu aquele dia tumultuoso. Pensou: 'Muito barulho à toa, por nada'. Por nada. Essa vida era-lhe dada à toa, ele não era nada e no entanto não mudaria mais. Estava formado".


Abaixo uns rabiscos incompreensíveis e outro nome: Daniel. Por algum motivo sua nuca arrepiou completamente ao terminar de ler a carta. Amassou-a e jogou no lixo da cozinha.

O dia seguinte passou lento. Não fez nada que fugisse de sua rotina programada de trabalho, mas uma sensação de incômodo a acompanhou por quase todo o tempo.

Depois dessa noite, quando cumpriu seu ritual de checar e-mails, tomar uma ducha rápida, despir-se e deitar, não se lembrou mais de nada. Acordou numa clareira, não mais nua como foi dormir. Vestia roupas que não conhecia. Logo sentiu que alguém ou alguma coisa a espreitava. Um senso de perigo iminente aflorou na mesma hora, na forma de uma descarga de adrenalina e um suor acre, frio e abundante. Sentiu-se como melecada com algo viscoso, ainda que estivesse limpa. A consciência de seu próprio cheiro seria curiosíssima se não fosse também apavorante. Foi quando começou a correr.

Mal terminou de relembrar das coisas que antecederam sua corrida sem direção, encontrou uma casa. Perdida e solitária entre árvores enormes, escuras e ameaçadoras. Na soleira da porta, um tapete personalizado: "Mathieu".

Decidiu que não queria ter razão. Não entrou na casa. Há muito que aprendeu a desconfiar do existencialismo.


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