quinta-feira, outubro 13, 2005

A magia da carona

Fernando conheceu Michael na terceira série do ginásio. Michael era filho de americanos que vieram ao Brasil durante a ditadura. Seu pai trabalhava em uma multinacional automobilística e ocupava um alto cargo na filial tupiniquim. Sua mãe não trabalhava. Mesmo antes do pai morrer de um ataque fulminante do coração e deixar a família em condições precárias, Michael já tinha problemas de sociabilidade. Só não era um nerd porque era maior do que todos seus colegas e tinha um temperamento quase maníaco. Brigava quase toda a semana, pelos motivos mais risíveis. Apenas evitou de ser expulso porque seu pai, enquanto estava vivo, doou rios de dinheiro para a escola. Seu único amigo era Fernando.
Por ser amigo de Michael, Fernando evitava possíveis surras. Entretanto, a relação entre ambos não era equilibrada. Fernando tinha outros amigos, algumas amigas também, ainda que morresse de vergonha de conversar com a maioria das meninas. Andava bastante com Michael, e nestes momentos gozava de um poder embriagante. Gostava de olhar as expressões de medo endereçadas para ambos, mesmo que não compatilhasse o espírito espartano de seu amigo e se metesse em confusões. Mas tinha a opção de levar uma vida mais tranquila também. Às vezes passava dias evitando Michael, que, sem ter com quem conversar sobre alguma coisa amena, como os resultados dos jogos de futebol, ou um novo desenho animado, mergulhava em um humor quase assassino, recheado de inveja azeda quando via Fernando com outras pessoas. Piorava o fato de Michael ter uma consciência bastante clara sobre as razões cruéis para o comportamento de Fernando. No entanto, não conseguia deixar de ansiar para que voltassem a se falar quando aconteciam estes períodos de abandono. Era Fernando que não conhecia de fato seu amigo gringo. Para os demais, era um demente estranho. Para ele, Mike no fundo era quase isso mesmo. Apenas vangloriava-se de saber de algumas coisas mais íntimas do menino, como a paixão de Mike por Clara, uma menina um ano mais velha.
Por um ano depois da morte do pai, a mãe de Mike conseguiu manter o filho na cara escola. Mas depois teve de mandá-lo para um colégio público. Ele e Fernando ficaram 7 anos sem se ver.
Quando se encontraram, por acaso, no cursinho preparatório para o vestibular, cumprimentaram-se timidamente, mas no decorrer das semanas seguintes, voltaram a andar juntos. Michael ainda tinha fama de maluco, e as pessoas ainda sentiam medo quando o viam.
Fernando não sabia porque, mas no pouco tempo que passou junto com seu antigo colega, percebeu o quanto passou a conhecer sua personalidade fascinante, e o quanto dela desconhecia no período da infância. Viu que Mike não era apenas uma bomba relógio, pronto para assassinar um colega no intervalo, quando o infeliz gozasse de seu andar de pato ou de seus óculos vermelhos de aros grossos. Na verdade, achava exatamente isso, mas agora também outras coisas. O glamour da demência de seu amigo ganhava matizes complexas, de alguém sensível. Mais sensível do que ele, concluiu. Mais do que isso, percebeu também que não gostava de fato de Mike. E nunca tinha gostado.
Quando se deu conta disto, ficou horrorizado. Consigo mesmo. Percebeu que pulava de uma pedra para outra como um sapo que fugia de um perigo maior que nunca vinha de fato, sem ligar verdadeiramente se a pedra afundasse depois que saísse de cima dela. Não conseguia assumir uma posição sua. Tinha amizades que não passavam de rotas de escape para o caso de aparecer um obstáculo em seu caminho. Era bom ter boas relações com o maníaco local. Pensou que não passava de uma rêmora, um peixe-piolho. Aquele que nada na barriga dos grandes tubarões. Intocável. Mas sempre pegando sobras.
Mudou-se de cursinho no dia seguinte. Depois de arranjar desculpas para não atender os telefonemas de Mike, este sumiu novamente de sua vida. Imaginava que da próxima vez que o visse seria nas páginas de um jornal. Isso fez com que visse definitivamente que não era diferente de nenhum outro fofoqueiro que acreditava na inevitabilidade de um assassinato em massa proporcionado pelo garoto. Entretanto, nunca mais viu ou ouviu falar de Mike.

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