quinta-feira, outubro 06, 2005

Cruz, espada e nada in between

Bom, greve de fome bem sucedida, que pôde trazer de volta uma discussão que desde quando eu estava no colégio lembro de existir, mas que parecia meio morta fora da região nordeste: a transposição do Velho Chico.
Quando surgem essas questões polêmicas, fico em parafuso, porque tenho receio de tomar posição partidária e procuro "ir pela lógica" ou pelo razoável. Aí me ferro, porque fazendo uma limpeza dos argumentos imbecis que existem de ambos os lados, fico com uma série de questões que em princípio são legítimas. Às vezes parece que tudo se resume em pesar tudo na balança. Claro, para mim é mais fácil ver as coisas assim. Não passo sede e, apesar de pagar uma nota todo mês, não me falta energia elétrica. Tudo bem, passar sede é pior que não ter luz. Mas há de fato garantia de que desviando o rio acabará a sede? Desviando, o suprimento de eletricidade pode ser conseguido por outros meios? A Escolha de Sofia ganha carne aqui em terras brazucas nos termos de "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", ou então a metáfora da panela e do fogo e por aí vai. E nem sei se as equações ter luz = ter sede; não ter sede = não ter luz, são reais.
O que me dá medo é que algumas dessas reinvidicações legítimas não encontram respaldo na possibilidade ou na intenção e no comprometimento sérios em realizá-las. Ou são tomadas sem nem sequer levar em consideração o que dizem seus adversários. Ah, eles eles ouvem sim, mas não escutam.
Isso fica claro na campanha do desarmamento. Ontem mesmo assisti o Jô Soares e lá falaram sobre isso (foi quarta, então era dia da mesa redonda com as 4 mulheres). Havia 3 a favor do desarmamento, 1 em dúvida e ele era contra. O que me intrigava era que eu tinha a impressão que o debate entre o sim e o não parecia operar em níveis diferentes de argumentação. Não sei se havia uma comunicação de fato entre eles. Sei de cor os argumentos a favor e os contra. Cada um elencava-os usque ad nauseam, bem como utilizava os contra-argumentos, também já canonizados e repetidos à exaustão, para se contrapor ao outro (o Jô Soares ainda tinha um forte trunfo: os macaquinhos de auditório que aplaudiam tudo o que ele falava, como se fosse muito corajoso em falar o que ninguém fala, mas pensa, e ser a princípio contra qualquer proibição - o que num país ainda cicatrizando as feridas de uma ditadura que estava aí até ontem, ganha um peso enorme; é chique até. O que para mim é equivalente ao mecanismo de dar um murro na mesa. Você vence o outro por não deixá-lo falar, ou deixá-lo constrangido ou coagido). De maneira geral, correndo o risco de simplificar algo que não é de maneira nenhuma simples, o argumento a favor do desarmamento parece basear-se em questões de princípio pacifistas ou em estatísticas do tipo "morre muito mais gente e há muito mais acidentes com a posse de arma por pessoas não capacitadas e você não pode competir com o bandido treinado"; o argumento contra parece vir no sentido do princípio do direito individual, respaldado pelo argumento de que a proibição não coibe o comércio ilegal de quem quer ter uma arma de qualquer jeito (e a perigosa analogia com a revolução russa e o nazismo, que desarmaram a população antes de criar gulags ou auschwitz por lá, com o governo Lula - como se fosse um partido aspirante ao totalitarismo que quer o poder por 1000 anos. Ainda que todo partido queira a reeleição, não vejo qualquer cabimento nessa comparação. Mesmo porque não acho que o PT tenha qualquer força para tanto).
Por um lado o seu direito de ter uma arma e exercer sua condição de indivíduo soberano e responsável. Por outro a "realidade" do "não é bem assim, seu direito alimenta o arsenal do bandido e você pode matar sem querer seu filho que chegou em casa bêbado de madrugada". Ambos lados têm dois argumentos: o teórico e o prático. Porque se é a favor ou contra de acordo com algum princípio e como justificá-los com exemplos concretos. Repertório para tal não falta. Só que tais argumentos são contrapostos em uma salada maluca. Além disso, o que se espera ao votar sim ao desarmamento? Que seja menos pior que haja proibição do comercio legal do que o contrário, ou porque idealmente se espera uma sociedade desarmada, ou porque quer dormir de consciência tranquila com o discurso do "fiz minha parte"? Vota por princípio ou porque se tem convicção de que as coisas melhorarão? Você vota porque a outra opção representa pouco em mudança real? Às vezes sou um tanto pessimista. Por vezes acho que não muda muita coisa na prática, mesmo querendo acreditar no contrário. Talvez na sua consciência mude, sei lá. Outra coisa é que também se constrói uma dicotomia tão irreconciliável, mas que curiosamente se expressa em níveis diferentes (me pergunto até se eles podem de fato ser contrapostos), que você não pode ficar no meio termo. No mínimo parece um diálogo de surdos (bom, diálogo é eufemismo).
No caso do São Francisco, porque a reivindicação de ter água para beber deve passar necessariamente por cima de talvez (porque nem isso é muito debatido) matar o rio? Não se pode discutir outras opções? Afinal, apenas para citar uma alternativa, se não tivesse tanta roubalheira na sudene com o lance das águas subterrâneas (ou na manipulação de outras fontes hidrográficas), talvez houvesse mais água pra galera. Se alguém diz que é contra a transposição já é reacionário ou então cruel. Se alguém é a favor, é iludido ou um latifundiário wanna be. O que não pode é ter que haver um bispo passando fome para somente então parar e discutir algo que se não for feito com cuidado pode criar mais um gigantesco elefante branco - sedento e no escuro.

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