sexta-feira, julho 08, 2005

A República e a Civilização dantescas


Duas palavrinhas que se infiltraram no repertório oratório dos desavisados de plantão (engraçado pensar num desavisado que faça plantão) me irritam profundamente toda vez que as ouço. Nenhuma das duas logicamente é nova, mas o sentido com que são utilizadas no jargão direitoso (às vezes nem tão à direita...) penso ser relativamente recente. Quer dizer, uma delas, "civilização", não é recente - mas esse é exatamente o problema! É espantoso como pessoas como o Huntington e seus comparsas atualizaram um conceito evolucionista, que deveria ter sido superado desde que Morgan e patota sairam de moda no começo do século passado, de maneira tão eficiente de modo que todo líder político o utilize na dicotomização entre "ocidentais" e "os outros". E "outros" na verdade é eufemismo. São "bárbaros" mesmo! Engraçado que enquanto o primeiro estágio da escadinha evolucionária virou efetivamente um termo politicamente incorreto (anos de crítica conseguiram que o "selvagem" perdesse a conotação pseudo-séria científica e fosse relegado apenas à esfera da pura difamação), o segundo estágio é utilizado como se realmente descrevesse uma diferença ontológica existente na metade da população do globo! Claro que o "bárbaro" é pejorativo, mas é uma categoria que de fato faz sentido para muita gente por aí.
Hoje mesmo eu vi a civilização contra a barbárie (que está assumindo conotação religiosa já há algum tempo no discurso do Bush: são "demônios" e têm "maldade no coração") em mais de uma dezena de declarações. Esses outros tornaram-se rotulados e totalmente fora do alcance da compreensão e da comunicabilidade.
A outra palavrinha irritante é "república". Ô saco, as pessoas têm noção do que estão querendo dizer quando dizem que o republicanismo não perecerá, não será cerceado por corrupção, conspiradores da liberdade, etc, etc, etc? Essa re-atualização semântica eu já não sei atribuir à um maldito específico que poderia ser mandado pro quinto círculo do inferno (dos iracundos e intolerantes), ou então ao oitavo (nona vala) - reservada aos "promotores de cismas religiosos e os semeadores de ódios, divisões e discórdas entre pessoas e povos". Aliás, é interessante tentar imaginar onde se encaixam umas figurinhas da cena política por aí... os castigos são demais! Depois eu podia lembrar de alguns. Interessante também que, se para Dante Maomé figura exatamente na nona vala, hoje em dia o Bush poderia estar em pelo menos uns cinco círculos diferentes!
Poderosa a palavra que transforma coisas e pessoas em pessoas e coisas.

(Dante e Virgílio no Inferno - William Bouguereau)

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