quinta-feira, dezembro 01, 2005

Histórias de gorilas e dragões


Na madrugada de ontem assisti King Kong vs Godzilla (ou Kingu Kongu tai Gojira). Bem tosco. Da década de 1960. Maravilhoso.

Sempre gostei desses filmes de Godzilla versus algum monstro grandão. Esse com o King Kong então... me parece o equivalente a um comercial em que aparecessem juntas Coca-Cola e Pespi. Os dois ocupam um mesmo... digamos... nicho - mas são no fundo completamente irreconciliáveis.

Bom, enquanto assistia comecei a viajar. Primeiro com esse negócio óbvio da destruição resultante do confronto. O filme é de 60 e bolinha, auge da guerra fria. Fiquei pensando se não tinha algo a ver com a posição do Japão nisso. Quer dizer, entre ex-URSS e EUA, talvez possamos considerar o Japão algo como um meio-termo; como um enclave da industrialização e do consumo ocidentais no que seria o oriente; uma ilha entre URSS e China por um lado, e EUA por outro.

Essa história de dois monstros ficarem se batendo sem um sentido aparente, apenas porque ambos são grandes e cada um quer ser o único a permanecer assim, enquanto os coitados dos japoneses e suas cidades são dizimadas como um mero acidente de percurso... bem, não era esse o sentimento que tínhamos quando apareciam informações do tipo "a URSS tem poder nuclear para destruir a Terra trocentas vezes, e os EUA trocentas ao quadrado"?! (afinal, até aí o capitalismo parece ter sido mais eficiente) Eu pelo menos me sentia uma formiguinha grata por nenhum operador de base nuclear ter cochilado ainda em cima do botão.

E para acrescentar, o Godzilla não é resultado de uma anomalia nuclear?!

Existem outras explicações complementares também. Pode ser que seja algo mais psicológico. No caso, em massa. Uma sensação de insignificância frente ao reino do inumano; ou, ao menos, uma posição de reverência frente a algo muito maior que si. Enfim, em uma terra que vira e mexe tem terremoto, tsunami ou tufão (o tornado ou furacão deles; não sei direito a diferença), a hipótese me parece até plausível. Coisa, aliás, que parece estar acontecendo com os americanos há algum tempo também. Vide a moda de filme de catástrofe agora, mas que já se anunciava desde filmes como Terremoto (aquele que tem o presidente honorário do NRA, aka Ben-Hur), pelo menos. Mas aí a coisa complica. Se há uma dimensão quase funcionalista (de regular conflitos sociais), o filme pode permitir também uma análise mais psicanalista. Trauma? Complexo?

Na verdade, enquanto via o macaco e o dragão se engalfinhando e rolando em cima do palácio imperial, me lembrei de um ensaio de Barthes sobre os marcianos que li há muitos anos. Barthes, naquele seu jeito francês de complicar tudo, tem, entretanto, uma sacada muito legal. Diante da ameaça da auto-destruição planetária com um confronto entre EUA e URSS, investida de uma representação esvaziada de alteridade - e por isso mesmo passível de possuir os sentidos mais estapafúrdios que são possíveis de imaginar - ele analisa o fenômeno dos viajantes marcianos. Para ele, os marcianos são o pólo extremo oposto da América capitalista, tendo os insondáveis e enigmáticos russos a meio caminho. Afinal, que americano sabia o que acontecia de fato em Moscou no auge da guerra fria? Coisas como o U2 (o avião, não a banda), embates entre agentes da CIA e da KGB na Alemanha Oriental e o que mais você lembrar das histórias de espionagem, alimentam uma mitopráxis de exotização do soviético que chega a ser ingênua, cômica e trágica ao mesmo tempo.

Agora, se o Said estava certo, isso não é novo. Afinal, o Orientalismo já não começou na Grécia Clássica? E passou, por exemplo, pelo Dante da Paulinha. Onde é que ele e Virgílio encontram Maomé? Na nona vala do oitavo círculo do Inferno. Já ali, quase cheirando o bafo de Lúcifer, no lugar reservado aos cismáticos e promotores do ódio.

Agora, não sei se Barthes estava totalmente correto ou se, ao contrário, os marcianos é que são os intermediários entre americanos e russos. Pelo menos em certas ocasiões parece o mais certo. Algo como o trickster do Lévi-Strauss.

Fazendo uma propaganda da minha dissertação (que, pasmem, foi retirada da biblioteca outro dia por algum maluco!!), é a função exercida pelo Milu, na oposição entre Tintim e os congoleses primitivos. O terrier é a figura anômala que, no mito, permite a relação, a mediação entre opostos, que de outra maneira, não se comunicariam. Milu, tal como os marcianos, está no campo do inumano. Ele é membro do reino da natureza, mas fala: uma terceira categoria. O congolês também fala, mas está com um pezinho na animalidade. O pólo extremo mesmo são os animais que Milu enfrenta: o leão, o macaco, o crocodilo e a serpente.

Segundo Barthes, o marciano representa o juiz - e em certos momentos, o carrasco também - que vem do céu. Observar e julgar esta raça que ameaça se auto-destruir. A ameaça nuclear não vem, no imaginário, do céu? Barthes inclusive chega a pensar sobre um certo despojamento marcinano como sinal desta posição superior. Eles não estão pelados, em discos lisos e sem qualquer tipo de rebuscamento? (tudo bem, tem Marte Ataca e Independence Day, mas isso veio depois) Mais do que isso: eles têm a mesma história que a nossa. Esse determinismo histórico se mostra em argumentos do tipo: "devem ser cientístas ou geógrafos marcianos que vieram nos estudar", ou "se são tão avançados para viajar até aqui, devem ter uma espiritualidade elevada também". Qualquer semelhança com nossa pequena aventura humana não é mera coincidência.

Só que Barthes não viveu para ver a queda do muro. Acho que algumas coisas mudaram na ameaça da invasão pela alteridade. Entretanto eles ainda vêm de fora, e não invadem exatamente - infiltram. Eles tomam os corpos, eles estão no governo (ou escondidos por este; o Arquivo X reatualizou a idéia da Área 51 de uma maneira poderosíssima) ou, supra-sumo do insidioso, controlam sua mente. Não tem agora um novo seriado (Warner, acho) que a esposa do cara é abduzida e não sabe? Ao que parece ela tem uma vida comum, mas algo foi feito a ela, então às vezes é como que possuída e perde o controle de si.

Bom, tudo isso para falar do Godzilla tretando com o King Kong. Em um mundo em que dois seres gigantescos lutam entre si para prevalecer em algo que não sei direito o que é, talvez eles não sejam as figuras anômalas. Talvez, ao inverso, sejam os pólos de alteridade, intermediados pelos pequenos japoneses - esses sim, liliputianos, indefesos, quase não-reais e quase-humanos (onde a humanidade, o foco do filme, parece ser um reino de grandes monstros briguentos).

Isso até a chegada de algum Spectreman ou um Ultraman (lembrando que os Ultramen, ao contrário do Spectreman humano, eram alienígenas que se infiltravam entre as autoridades que defendiam a Terra dos monstros de modo a obter informações de onde enfrentá-los. Agora, os vilões do Spectremen era um macaco loiro - Dr. Gori - e um gorilão - Karas. Falarei sobre eles em outro post), que circulam entre as pessoas comuns, mas podem crescer e lutar contra um monstro assim que este apareça para ameaçar alguma cidade. Então, quem sabe, Kong e Godzilla sejam de fato as figuras mediadoras da oposição, substituições e passíveis de serem substituídas por outras tríades de oposição mediada, como um humano que pode crescer enormemente e que passa a ocupar o lugar do trickster. No fim das contas ele nunca vai poder levar uma vida normal. Um Cinderelo. Um justiceiro que não pode gozar das glórias. A figura ambígua que incorpora a dualidade que media. E por aí vai.

Não sei. Mas King Kong contra Godzilla não pode ser também um exemplo do que Lévi-Strauss quis dizer com os mitos conversando entre si sobre os homens? Ou seria a despeito dos homens? Mesmo que estes pensem que são responsáveis, ao menos, pela produção e direção de um filme sobre os mitos.

Diferente do que talvez se poderia concluir pelo que foi exposto, também acho que os mitos não são reflexos simples de relações sociais. Tal como o rito, os mitos - como discursos que sâo - têm uma capacidade de tranformação do mundo dos homens que não é desprezível. Mesmo que se admita que eles não são expressão de uma estrutura mental profunda. Agora, se no nível da narrativa (ou diacronia), King Kong, Godzilla e os marcianos são coisas completamente diferentes, na análise da sintaxe (pois são linguagem), eles oferecem, sincronicamente, algumas correlações interessantes. Análise paradigmática do enredo do filme, mas também sintagmática, se formos considerar todos os King Kongs do cinema, todos os Godzillas, e todos os homenzinhos verdes (ou cinzas), sobrepostos e contrapostos em uma perspectiva mais geral. Não apenas elementos sistêmicos de um mito, mas mitos unidos pelo sistema de transformações que fornece ora um gorilão, ora um viajante espacial para dizer algo.

É, por mais que falem contra o binarismo estrutural, não consigo deixar de tomá-lo como fundamental em quase tudo - como, aliás, já dizia Leach.

Depois vou tentar uma análise estrutural dos filmes do Godzilla e do King Kong. Existem suficientes para tentar.

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