terça-feira, dezembro 20, 2005

Cartas periféricas

Culiacán, junho de 1970.

Querido Alfred,


Completei meu primeiro aniversário mexicano na capital náhuatl ontem. Não tive forças para sair com Enrique, Miriam e Cristóbal como pensei que faria. Eles se tornaram amigos queridos, mas não queria chateá-los com meu estado de espírito negro. Passei o dia todo em companhia de uma moça chamada Rosa, cuja incrível capacidade de processar cerveza a fez uma companhia mais que apropriada para o meu humor. Tão pequena e tão nova, mas com o fígado resistente como o de um caminhoneiro! Juro que se não estivesse diariamente me esforçando para enriquecer os bares daqui não teria sido capaz de voltar com Rosa para o hotel. Jeff adoraria beber com ela, tenho certeza. Ele sempre reclamou que estava apenas se aquecendo quando todos nós já não nos agüentávamos em pé.

Mas já sei o que dirá. Tenho que me cuidar mais. É verdade, mas tenho a impressão de que enquanto ficar neste hotel não poderei evitar estas crises de melancolia e depressão. Tenho esta urgência de me misturar aos nativos cada vez maior.

Evito voltar para o hotel durante as horas do dia. Lá encontro apenas as mesmas famílias americanas fantasiadas com roupas de safári. Ou os obesos solitários, de óculos azuis-escuros, rosados de sol, em busca de una chicana para trepar. Alguns sequer tiram suas alianças. Comecei a frequentar os buracos locais, que não têm turistas em busca de aventuras seguras e a bebida é quatro vezes mais barata. Mas comecei a perceber que estes lugares também fervilham de estrangeiros. Mas são os perdedores, os criminosos, os que desceram tanto que sequer lembram de onde vieram e não têm idéia para onde vão, além da certeza que beberão mais uma garrafa daquele whisky de cinco dólares.

Me deprime que encontre apenas pessoas que voltarão abarrotados com colares de contas comprados na frente do aeroporto como se fossem provas de seu encontro com o exótico, fotografias de seus passeios de iate e histórias inventadas de como tudo é quente e diferente. Ou então aqueles que só vieram para esta terra porque mais nada funcionou em casa. Você sabe do que estou falando. Nosso país foi uma grande cadeia inglesa. Aí, como aqui, imaginam-se grandes expedições por um mundo passado, perigoso, verde. As águas que banham Sidney são do mesmo Oceano que cheiro enquanto escrevo estas linhas, com Rosa dormindo ao meu lado. Penso que não estou tão longe de casa.

Mas não consigo deixar de ter esperança de encontrar o México verdadeiro atrás de uma esquina, no fundo de um callejón estreito, ou escondido atrás das sombras dos hotéis e cassinos. Só que estou aqui há tempo suficiente para desconfiar que a minha idéia de México está se esvaindo junto com a bebida do copo à minha frente, em um bar caindo aos pedaços.

E por que há tantos de mim vagando cambaleantes em lugares assim? Voando bêbados e suados em volta da luz fraca do bar, envoltos em fumaça de cigarro barato, hipnotizados tal qual mariposas pela esperança mortiça de alguma luminosidade na vida. E tal qual mariposas, eventualmente morremos, teimosos, depois de tanto dar cabeçada na lâmpada, queimados quando a luz esquenta o suficiente. Rodopiamos em queda certa e breve, fritados sem nem ter tido chance de enxergar alguma compreensão de que aquela luz, enfim, não é o sol, nem a lua – mas a propriedade de alguma outra pessoa, que é sovina e indiferente a ponto de comprar a lâmpada mais barata do mercado para receber os insetos que voltarão sempre e sempre, alimentados com a promessa de que a verdade – seja qual for – está escondida debaixo de todo esse circo. E então varridos no final da noite, por uma mulher sem os dentes da frente, entediada, morrendo de vontade de terminar logo seu trabalho ingrato e mal-pago e dormir, junto com os restos de copos quebrados, bitucas de cigarro e toda a imundice do mundo.

Pois a verdade é que há tantos de mim por aqui porque somos vítimas de uma fórmula simples e perene. Procuramos todos pela luz alheia, quando deveríamos olhar para os olhos daquele que nos contempla, incrédulo com a miséria que encontra toda manhã, quando escovamos os dentes. M = T x D2. Isso é o que aprendi. A condição de mariposa é resultado do tempo em que sua desilusão é alimentada por ela mesma. Este sou eu, Gary Bunda-Mole, que sequer tem forças para acreditar na verdade lapidada com muito álcool, e admitir que seja lá que elixir de vida que procurava do outro lado do mundo, este não estará aqui e nem em lugar algum, porque a constatação, Alfred, é a pior das maldições.

Enfim, desculpe pelo desabafo. Talvez esteja assim porque vejo muita pouca diferença com o feito no último ano. Tive que acreditar que ao viajar para uma nova vida colocaria em prática o desejo de mudança. Se estivesse fazendo algo de concreto talvez descobrisse uma maneira de mudar. Isso passará.

Diga para Geórgia que apreciei muito os cigarros. Estou procurando uma casa. Assim que souber ao certo escreverei informando o endereço. Mas continuarei a receber suas cartas no hotel por enquanto. Lembranças a todos.

Quanto puder, faça-me uma visita. Não sei se você gostará daqui, mas eu apreciaria muito.

Seu,

Gary


PS- Rosa acordou e manda um beijo. Falei tanto de você a ela que vocês já são íntimos.

Um comentário:

Skywalker disse...

Chris, de quem é essa carta? fiquei curioso...

Abraços,

Marcelo