quarta-feira, abril 04, 2007

O diretor interacionista

Robert Altman faleceu no final do ano passado, mas fiquei sabendo apenas esta semana. Resolvi fazer um post, falando um pouco sobre o diretor que, tenho quase certeza, é o meu preferido e um dos melhores que já existiram.
O primeiro filme do Altman que assisti, me deixou fascinado, ainda moleque, em uma época em que não tinha o mínimo interesse em saber que havia alguém por trás de um filme maravilhoso. Minha relação com o cinema nessa época era inteiramente desprovida de pré-conceitos, imagino. Não ia assistir um filme por ter certo diretor, ou certo ator envolvido na produção. Eu assistia, gostava ou não. Devo dizer que tal se dava por uma completa ignorância, claro. Bom, já começava, na primeira década da minha vida, a eleger alguns heróis. Eram os atores dos Spaghetti Western, eram os atores dos filmes de guerra dos anos 60 e 70, eram os atores dos grandes épicos dos 50. Clint Eastwood, Lee Van Cleef, Telly Savalas, Yul Brynner, Richard Burton, Donald Sutherland (só homem?!) e por aí vai. Mas nunca diretores. Acho que, de maneira geral, era a época de formação do meu gosto cinematográfico. Bom, tudo isso para falar que o filme era M.A.S.H. Brilhante, achei. Mesmo sem saber porque, ou quem fez.
Ainda hoje não tenho muita certeza sobre o que me atrai tanto nos filmes de Altman. Claro, ele tem tomadas espetaculares, um movimento de câmera que você logo reconhece como sendo de alguém que sabe o que está fazendo. Mas ele não foi um estilista como o Leone foi. Não é isso que o faz sobressair. Um diretor não é responsável apenas pelo visual. Mas também pela cadência da história, a orquestração de performance e som, fotografia e desenvolvimento do script. E a amarração do conjunto é feita com maestria pelo Altman.
Os meus filmes preferidos são os que essa amarração é feita com uma sutil e hecatômbica análise sociológica. Sim, acho que o Altman é mais sociólogo do que muitos aí na academia. E mais influente e eficaz também.
Uma das minhas melhores professoras uma vez disse que o Altman é o mais interacionista dos diretores. Ela está certa. Os personagens – e acima de tudo, os grupos sociais – retratados no filme, têm uma relação de interdependência sistêmica irresistível, mesmo quando não têm qualquer relação entre si. Algo como, para quem tem certa familiaridade, o sistema colonial sul-africano analisado por Gluckman. Celebrado como o primeiro antropólogo a compreender que uma sociologia sul-africana tem necessariamente que lidar com brancos E negros em um sistema de dominação, o desafeto de Mary utilizou o recurso da análise situacional para perceber e descrever esta dinâmica relação social.
Pois é exatamente o que faz Altman. Short Cuts ou Prêt à Porter, por exemplo. Toda uma análise (e uma critica velada, que pode ser percebida em alguns detalhes, mas que quando compreendida pesa uma tonelada) sociológica é feita em um acontecimento, um pequeno recorte de um universo maior. Mas é a porta de entrada.
As pessoas, os grupos transitam nos filmes e são ligados por alguns marcadores deliberadamente introduzidos para que o espectador tenha a sensação de interação (essa mesma professora, acertadamente, percebeu que em Prêt à Porter, é o cocô do cachorro). Mas não são exatamente tipos sociais. A pretensão sociológica de Altman não é de um nível geral, mas de grupos específicos. Ainda que a técnica seja generalizável.
Não digo que o Altman inventou o recurso. Mas sua influência no cinema é notória. Para mim, o grande mérito do Tarantino, por exemplo, foi ter aprendido a lição – que aplicou em Cães de Aluguel, mas principalmente em Pulp Fiction. As tomadas – senão as histórias que compõem o mosaico da película – de alguma maneira são organicamente ligadas, mesmo que não cronologicamente. O tempo não tem importância aqui (ou melhor, a linearidade), porque a ação, à la Flaubert, o espectador descobre, quando a história é bem contada, possui um certo cordão umbilical que sustenta toda a obra – uma certa ligação lógica episódica que torna tudo inteligível. Mais ainda, inevitável. Mesmo indo pra frente, pra trás, permeado de flashbacks (eis aí o segredo do sucesso de Lost).
Agora, sobre um dos melhores filmes que já assisti (e só descobri isso depois de ter assistido umas 3 ou 4 vezes), Gosford Park: Acho que é o expoente máximo do trabalho de Altman. Muito se deve aos maravilhosos atores, claro. Mas você não pode deixar de admirar a fina análise de uma sociedade inglesa extremamente hierarquizada dos anos 30. Acho que é o filme que ilustra a tal da Nova História. Tudo bem, você não pode deixar de lado a nobreza e a riqueza, mas a perspectiva não é mais exclusivamente deles. Mais ainda, a perspectiva é essencialmente dos criados, dos habitantes “downstairs”. Não é necessariamente a correta, mas demonstra que é tão válida quanto outra.
Nunca há uma cena em que não exista um criado, ignorado e subestimado, mas que está atento, tanto às regras de comportamento dos patrões como aos deslizes que apenas confirmam as regras (e que também existem na cozinha e nos aposentos de baixo, evidentemente).
Há uma etiqueta, uma conduta. Ou melhor, uma moralidade silenciada, mas partilhada e reconhecida por todos. Os criados são os que fazem tudo funcionar. Dentro de seu reino, eles têm suas próprias distinções (adoro quando a governanta entra em conflito com a cozinheira, quando as fronteiras e as jurisdições são testadas e reafirmadas: na cozinha, manda a cozinheira). E é interessante ver como a autoridade não reside necessariamente onde deveria estar, onde nominalmente seria lógico encontrar, em uma casa altamente hierarquizada. O senhor assassinado é o chefe nominal, mas quem governa de fato em certas situações são os criados, ou é sua esposa (a linda Kristin Scott Thomas). Como os Lele do Kasai, na distante África Central, perto do rio Loange. Há todo um desenrolar simbólico que garante que o sistema funcione, fique em equilíbrio, que as autoridades não se excedam.
E os criados se alimentam dos acontecimentos “de cima”, na forma de fofoca (já alertava Norbert Elias para o valor da fofoca na sociedade inglesa), reproduzem hierarquias (a cena em que a criada da baronesa tem que mudar de lugar na mesa, porque desde-quando-o-titulo-de-barão-é-mais-importante-que-o-de-conde, é magnífica) e alimentam (literal e metaforicamente) por sua vez os "de cima”.
Alguns detalhes são preciosos, como quando Altman nos mostra que os criados convidados não têm nomes. São referidos pelo nome de seus patrões.
E quem, ou o quê faz a ligação entre os dois mundos? Acho que é o personagem de Ryan Phillippe, o ator que se finge de criado para pesquisar sobre seu novo papel no cinema. Ele, de alguma maneira, não pertence. Sobressai. Mesmo antes de sabermos que ele é um ator, há algo de errado, algo de misterioso. Tenta se comportar como um criado, mas não tem o hábitus; em alguns momentos interage como um igual “aos de cima”, mas não tem o capital simbólico (estou sendo bem Bourdieu, mas acho que cai como uma luva aqui). Ele é o trickster de que fala Lévi-Strauss e Leach. A figura anômala que desafia as classificações, apenas para unir os pólos. Ele é a impureza que explicita a regra, para lembrar também da minha pesquisada.
Quando o personagem se revela quem ele de fato é, o mal-estar não é superado. Pelo contrário, é exacerbado. Ele participou de coisas que não deveria. Ele esteve no âmago da regra – que deve ser partilhada, mas nunca expressada explicitamente. Altman, claro, sabe disso, como vemos na fala de uma criada, quando o ator-antes-criado reclama do tratamento que passa a receber: “você não pode pertencer a ambos os lados”. Mas ambos os lados fazem parte de um sistema. Entretanto, os segredos não podem ser pronunciados, tornados públicos. Eles têm que ser descobertos, desvendados, fofocados.

O filme é espetacular. O que o Altman faz com as câmeras, que não seguem os diálogos, transmite uma sensação de espontaneidade que deveria - mas não é - desconfortável. O que é verossímil.
No próximo post vou usar como ponto de partida a personagem Elsie, a criada que tem um caso com o senhor da casa e é protagonizada por Emily Watson, para falar de outra coisa. Ou melhor, sobre uma pessoa.

Um comentário:

Coração bonsai, coração bom fica disse...

Que o Altman e o James Brown troquem bastatnte figurinha!