quarta-feira, maio 24, 2006

O neurótico e o mágico

A pedidos, continuo a série imagética das palmeirinhas da antropologia. Agora com algumas palavrinhas rápidas sobre dois deles.

Dois dos responsáveis pela polarização institucional na antropologia inglesa (até o começo da hegemonia africanista de Manchester), Malinowski e Evans-Pritchard fizeram muita - e boa - etnografia. Um lecionou em Londres e o outro em Oxford.

A contraparte conradiana da aproximação polonesa hasburg com a Inglaterra, Malinowski era uma figura estranha. Considerado o fundador da antropologia social moderna em sua profissionalização - e sacralização - da etnografia, Malinowski desenvolveu o evolucionismo cultural em um funcionalismo inspirado em Durkheim e na psicologia alemã do final do século XIX, calcado em intenso trabalho de campo. Tal foi seu impacto que dividiu a disciplina em dois pólos que ainda hoje não deixaram de ser utilizados para distinguir as "linhagens antropológicas": Leach, que viria a desenvolver sua carreira exatamente na LSE, dominada pelo polonês, colocou Frazer como principal expoente da antropologia intelectualista (de gabinete), que tem Lévi-Strauss como exemplo claro. Do outro lado, Malinowski e ele (Leach) próprio.
Permaneceu vários anos em Trobriand, aproveitando a impossibilidade de voltar à Europa, com a explosão da Primeira Guerra, para fazer seu trabalho de campo por um período de tempo invejável e já não mais possível. Também nos EUA, em licença sabática, foi surpreendido por outra guerra mundial. Terminou por lecionar em território americano até sua morte em 1942.
Em seus anos em Londres, reuniu um enorme grupo de alunos com ajuda de sua posição como etnógrafo profissional e também com um carisma legendário - que por vezes tornava-se insuportável para os que conviviam com ele e para vários outros antropólogos.
Mas é na vida amorosa que Malinowski parece ter realmente controvertido - como pode ser depreendido, por exemplo, dos famosos diários (como o dilema que sentia em relação a Elsie Masson, sua noiva, e Nina Stirling, com quem se correspondia desde Trobriand). Stocking interpreta sua relação com as mulheres por um viés edipiano - sua mãe como paradigma que orientou estas relações. O quanto das frustrações e sonhos que tanto chocaram antropólogos acerca das pessoas que estudava, como expõe nos diários, não teria natureza essencialmente sexual? As relações com várias de suas alunas também ficam envoltas em sugestões extra-acadêmicas. Com Audrey Richards, por exemplo, quase se casou depois da morte de Elsie.
A influência de Radcliffe-Brown e uma nova abordagem mais estrutural ocorreu paralelamente com uma re-distribuição das cadeiras de antropologia para outros centros universitários - na Inglaterra e em suas colônias. Malinowski passou a ser criticado e até hoje carrega uma fama - injusta, muitas vezes - de ter sido um pensador medíocre, ainda que bom etnógrafo e excelente professor (um dia vou falar sobre Nimuendaju, também refém do estigma do "bom coletor de informações e limitado teórico").
Evans-Pritchard, que se formou na LSE e chegou a dar aulas na instituição, transferiu-se para Oxford depois de seus principais trabalhos no Sudão e no Egito, substituindo Radcliffe-Brown na cátedra de antropologia (que havia ido para São Paulo, apenas para voltar logo depois).
A antropologia funcionalista dominada por Malinowski no período entre-guerras, deu lugar ao estrutural-funcionalismo depois do fim do conflito. A LSE ainda era um pólo de prestígio e influência, agora liderado por Firth, mas Oxford figurou como uma das poucas opções na formação de antropólogos no pós-guerra - ao menos até o crescimento de Manchester, sob a influência de Gluckman, que também passou por Oxford; e de Cambridge, com Fortes, também saído de lá.
Evans-Pritchard também foi uma figura interessante. De personalidade igualmente forte, também influenciado por Durkheim e o Année Sociologique (ainda que de maneira diferente, utilizando o conceito de estrutura social para integrar a análise das representações com uma descrição da estrutura a estas ligada), criticou de maneira contundente a metodologia e a teoria malinowskiana. Tal como é dito sobre o etnógrafo polonês, Evans-Pritchard gerou uma mitologia ao redor de si que contribuiu para muito do folclore e o alinhamento paradigmático da disciplina. Ambos tinham poucas papas na língua e ambos tentaram de fato criar um grupo de discípulos com agendas intelectuais relacionadas com seus interesses (ontem assisti à defesa de uma ótima dissertação, sobre Antônio Cândido. A contraposição entre ele e Florestan Fernandes também dá muito pano pra manga).
Autor do melhor livro de antropologia (na minha opnião), Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, bem como dono de um estilo de escrita primoroso, ele foi também um grande contador de histórias, geralmente em algum pub da cidade, ciente do impacto que gerava nos alunos e de sua importância na antropologia. Sua conversão ao catolicismo foi apenas outro dos fatores que contribuíram para sua mitologia pessoal.
Enfim, duas figuras que são fascinantes e cujos trabalhos estão na base de tudo o que eu estudo.

Um comentário:

Karina Kuschnir disse...

Adorei a futurologia certeira ao dizer que ainda escreveria o artigo sobre Kurt Niumendaju! Esse post podia ser esticado ate a Mary Douglas pra virar um artigo!