sexta-feira, setembro 12, 2008

Neuras londrinas

A casa onde morava lá na terra das tortas devia ter mais de 100 anos de idade.
Também vi que as casas dos amigos de lá eram igualmente velhas. Um pouco mais, um pouco menos, mas bastante velhas mesmo assim. Então acabei achando meio normal que o chão do meu quarto não fosse realmente plano, e as tomadas elétricas meio suspeitas.
Só que nos últimos meses de minha estada lá comecei a ficar bastante encanado com isso. Ainda mais depois que descobri que o que eu acreditava ser um armário no banheiro era na verdade a entrada para o porão da casa.
O tal armário estava sempre fechado e eu acreditei que estivesse trancado e lá apenas houvesse material de limpeza. Mas um dia a porta estava meio entreaberta e resolvi dar uma espiada. Era bastante escuro, úmido e mofado. Uma boa morada de troll. Ou de repente uma passagem para um mundo secreto saído da imaginação do Neil Gaiman.
O grande problema, para mim, não era tanto o risco dos abestos ou dos fungos assassinos, mas o fato do porão ser bem embaixo do meu quarto. E como o chão deste rangia bastante com qualquer movimento que fazia, deduzi que aquele calombo que existia do lado da cama, meio como uma concha no chão, de mais ou menos um metro de raio, era sinal de que não deveria existir uma laje muito resistente entre a minha morada e a do troll.
Comecei a ficar com medo de tudo aquilo desabar um dia.
A velhinha do apartamento do lado também me contou umas histórias meio assustadoras e contribuiu para a minha paranóia. Ela me disse que os donos do prédio eram gangsters e vira e mexe deixavam o heating quebrado por semanas, em pleno inverno. Aparentemente também não gostavam que os moradores notificassem as autoridades municipais sobre problemas estruturais na construção (um dia fiquei morrendo de medo de deixar duas moças, que eram da força e luz de lá, darem uma olhada na fiação. Mais ainda quando vi que elas ficaram revoltadas com o que viram e anotaram tudo num caderninho. Fiquei algum tempo esperando o primo mafioso fortão do dono me visitar um dia com um bastão de beisebol). Enfim, segundo ela os donos não cuidavam de nada e alugavam aquilo para estudantes estrangeiros ou velhinhos inofensivos que acabavam se sujeitando a qualquer coisa sem reclamar.
Tudo isso me deixou ainda mais apreensivo, já que imaginei que a fiscalização do equivalente do contru deles lá - que achava que devia ser rigorosíssima - não tinha nem idéia da fragilidade do meu lar.
Mas, como em outros momentos da vida, preferi não fazer nada e torcer para não acordar no porão até o dia de ir embora. E também é duro quando você não conhece muito bem os códigos de conduta de outra sociedade e as formas de reivindicar seus direitos...

*******

Um dia, andando com minha amiga Camila, por Primrose Hill pelo que me lembro, passamos na frente de um escritório de uma ong que cuidava de gorilas na África. Ela já vinha me falando há algum tempo do desejo de fazer algum trabalho voluntário e me convenceu a entrar e perguntar sobre como ajudar na nobre causa.
O grande problema, descobri, era que a ajuda - bem vinda, claro - não consistia em viagens para o Congo para ver os tais gorilas. Era ficar no escritório cuidando de burocracia, varrer o chão, separar documentos...
Sim, eu sei que alguém tem que fazer isso. Mas essa idéia de fazer caridade à distância nunca me atraiu. Confesso que o que me interessava eram os louros da empreitada. Trabalho de campo!
Fiquei então sabendo de outra ong que consistia em ser voluntário para brincar com animais abandonados. Essa me interessou mais, porque era algo palpável, como se minha consciência não se satisfazesse apenas com a promessa do benefício, tinha que ver de fato acontecer. Mas acabei não indo atrás também. Não sei exatamente porque.
Outra vez, também com a Camila, quase entro junto numa outra ong, essa em Camden Town, para pegar no pesado em prol de humanos carentes (sim, era separar caixas e varrer o chão). Mas de novo não me apeteceu.
Uma que cheguei a fazer algo foi numa livraria da Oxfam - separar e arrumar livros para serem vendidos e arrecadar dinheiro para os programas sociais deles. Mas isso já foi no final da estada lá, que foi bastante corrida.
Fiquei pensando porque lá o apelo para ajudar é mais forte - ao menos para mim, ainda que eu tenha a impressão que seja algo generalizado. Porque eu lá, ainda que na minha preguiça e falta de comprometimento social costumazes, planejava fazer muito mais do que aqui, no meu próprio país?
Minha contribuição aqui sempre é monetária, no máximo doação de roupas e eletrodomésticos velhos. Sempre no esquema "delegação de consciência". Porque então a sensação de que as organizações de suporte inglesas são mais eficazes?
Minha hipótese é de que essas mesmas organizações de ajuda operam nos canais e mecanismos de circulação internacionais abertos pelas instituições de controle coloniais (extremamente eficientes, ainda que remodeladas). Controle e governo de um lado, e desenvolvimento e assistência por outro, sempre andaram de mãos dadas no projeto colonial. A herança do projeto civilizador é óbvia - o que não quer dizer que deva ser extinta - e as redes de funcionamento das ongs européias trilham caminhos abertos por seus ancestrais hoje desacreditados. Sem deixar de lembrar, claro, que o montante de recursos arrecadados é infinitamente maior por lá.

Nenhum comentário: