Tendo isso em mente, publico aqui um textinho, escrito em outras bandas, em outro momento, com outro nome, em outro contexto. Ele foi inspirado na autobiografia de Leiris. É dito que esta tem intenção sociológica, ainda que feita por um antropólogo, e que tem problemas não resolvidos com a literatura. Isso porque tem intenção explicativa generalizante. Como falar de si sinceramente? Como lidar com a criação na expressão? O que o discurso de si traz deste indivíduo ou do social?
Para Leiris é o risco - real - que sofre o autor a maneira pela qual toda a beleza da palavra transcende de certa forma a literatura. Minimizar o retoque da narrativa voltada para dentro (ainda que feita para fora) com a navalha da confissão.
Pessoalmente não sei se isso é possível. Quer dizer, a romantização da autobiografia, a criação, a construção de sentido para o que é narrado, para o conjunto das coisas narradas - isso parece certo. Afinal, contar a lembrança já implica certa escolha e uma estilização de seu relato.
De qualquer forma, que beleza de criação sobre a possibilidade de uma catarse sincera!
Sem mais, coloco o texto, com algumas imagens bem a propósito:
A confissão da palavra
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Tem daquelas teorias do entendimento das coisas que ficam na cabeça mas nunca são de fato formuladas para outrem (ou para si mesmo em forma de raciocínio concreto).
Uma delas é sobre do que são feitas as pessoas. Não digo materialmente. Átomos, células, órgãos ou éter (o tal do espírito). Penso em algo menos definível e mais esotérico - na falta de uma palavra melhor.
Nessas horas um exemplo é melhor que uma explicação: existem as pessoas que pensam em significados sobrepostos e as que julgam os atos. Existem as pessoas que justificam as corridas de touro e as que as condenam.
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Não porque umas são sádicas ou então poéticas e outras porque são sensíveis mas ingênuas. É quase como se algumas fossem claustrofóbicas e outras não, sem qualquer motivo aparente. Elas podem entender os argumentos expostos pelo outro lado e mesmo assim, ao final, não concordar. Entretanto, alguns pensamentos podem ajudar a caminhar neste pântano do relativismo. Aqui, mais para mim.
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Sim, há o sangue. O touro é quase sempre morto depois de espetado e ludibriado por certo tempo em uma arena. Mas há o ritual, há o simbólico envolvendo toureiro, multidão e touro. Uma certa cumplicidade, nem sempre clara, de uma encenação que busca superar o simples ato daquele espetáculo (se tem sucesso ou não, é outra história). Encenação que se quer atemporal e humana, no sentido mais abrangente da palavra. A dança de signos, símbolos e significados, conscientes ou não, mitologizados e partilhados, é riquíssima em uma tourada.
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Demorei um pouco para visualizar exatamente esse universo quase semântico do embate entre animal e homem. Melhor dizendo, sentir. Já que entre o discurso e a experiência, há o mundo (e a maioria dos mal-entendidos).
Resta, na pior das hipóteses, torcer para o touro. Sim, porque a magnitude do acontecimento se deve à existência do risco. O toureiro pode ser atingido.
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Em suas confissões, Leiris, que além de tauromatólogo foi também antropólogo, mostra sua preocupação com o poder da foice na expressão artística. Queria que a palavra tivesse a mesma sinceridade de espírito que o ato do toureiro. Afinal, onde está o risco, na escrita, que enfrentam os homens na plaza? O risco que ultrapassa o estético, que confere valor e realidade material à arte, pois significa perigo real em forma de um par de cornos em rota de colisão. A regra que segue o toureiro é transmutada ao escritor e sua arma não é a espada mas a confissão. O compromisso de se desnudar, causar constrangimentos a si e aos que ama.
Mas mesmo Leiris admitiria que a platéia moral que controla a performance do toureiro não é a mesma platéia do escritor. Também sabe que ambos são impulsionados por um desejo narcisístico de ver a si ao olhar introspectivamente. Desejo, também, de absolvisão. Desnudar-se, mas de maneira e técnica corretas, para que fossem criados, pela empatia, cúmplices entre os espectadores. Pessoas que compreendessem e, se possível, admirassem.
Chego sem seguir a fundo a lição de Leiris, pois vim para confessar sem a censura dos conhecidos. Ainda sim, me conforta a sensação de expor. Menos digerir do que vomitar. E, no final, o "chifre acerado" pode atingir seu alvo, afinal de contas.
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(Picassos e Manets)
2 comentários:
Sabe, não é que eu seja contra a tourada. Ou sensível mas ingênua.
Mas há um desequlíbrio fundamental na arena - um homem, um touro, cercados de homens por todos os lados. Eu vejo mais poesia no chifre acerado do que na espada da tauromaquia.
...matar o touro para matar a besta, o animal irracional que existe dentro da gente... bom texto, chris!
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