Acabei não escrevendo tanto aqui quanto gostaria esse ano. Vou tentar ser um pouco mais assíduo em 2017, até porque esse é um momento de escapar um pouco, desabafar um pouco, às vezes me divertir, tirar um pouco o peso da correria cotidiana. Falar de algo que pode não ter muita importância no grande esquema das coisas.
Nesses meses sem escrever muito eu acumulei algumas histórias da academia - algumas depois eu posso contar. Mas queria muito escrever algo ainda esse ano, e termina-lo com um post des-academizado (bem, talvez só um pouquinho de academia mais para o final - mas prometo que é algo secundário no texto). Também pensei em umas histórias engraçadinhas - mas hoje me sinto um pouco melancólico e me sentiria forçando a barra contando algo engraçado. Histórias mais leves para o ano que vem, ok?
Esse foi um ano muito difícil - disseram todo mundo. Cada um teve sua cota de angústias pessoais, mas todas alimentadas por um clima de descrença, de medo, ou mesmo de raiva generalizado. Coisas que parecem se materializar num desgosto do dia a dia.
Gosto muito do meu bairro, mas ele abriga também a pior elite metropolitana que existe atualmente. Gente que camufla (ou nem tanto, license to kill, license do spill) preconceitos através do hoje liberado e sancionado ódio à corrupção e ao banditismo institucionalizado. Gente que bateu panela, exercitou seu classismo, seu racismo e seu sexismo numa espécie de loucura coletiva e que agora, defenestrada a figura preferida de todos para malhar, precisa encontrar outro alvo para extravasar as frustrações que, surpresa surpresa, não acabaram num passe de mágica. Não que já não exercessem cotidianamente seus micro-poderes, mas agora vejo pessoas que continuam amarguradas, sem ter mais um bode expiatório para canalizar tanta energia. Algo que a história já cansou de nos mostrar, evidentemente (sempre existem grupos para perseguir, certo?).
Frequento uma padaria do lado de casa - e tive que dominar a habilidade de não prestar atenção naqueles tiozinhos brancos de classe média com seus carrões que gostam de tomar um pingado e achar que são root. Mas de vez em quando não dá para não escutar. E vejo eles exercitando um sadismo classista, sobretudo com as atendentes mais humildes que lhes servem café e pão na chapa. Fazendo piadas escrotas e sabendo que terão aquela risadinha amarela em deferimento a um poderzinho podre que faz de refém quem não se pode dar ao luxo de mandar pastar. "Sim, é isso mesmo doutor", "que engraçado, doutor", "é, aonde já se viu tanta sem vergonhice e roubalheira, doutor". Fórmulas centenárias de sujeição, de classe, de raça e de gênero. É um exercício do prazer da submissão formal às maiores barbaridades e opiniões reacionárias que sentem-se a vontade de proferir - mesmo que no fundo saibam que a outra pessoa pense "que babaca". Praticam sua escrotidão e depois deixam uma nota de dois reais na caixinha dos funcionários.
E não é só na padaria. Existem os butecos, onde o mesmo acontece, mas agora com garçons. É que buteco eu já não frequento mais, desde que a cerveja passou a me fazer mal.
E tem o clássico supermercado - outra zona intersticial, em que esses mundos se encontram - mas também em um ambiente controlado (quando as fronteiras ameaçam ruir, quando as pessoas teimam em não se conformar aos seus espaços ou aos seus papéis atribuídos, como nos rolezinhos, a maledicência e o policiamento entram em ação rapidamente). Ontem mesmo, presenciei triste uma mulher com sua Louis Vuitton a tira colo ameaçando falar com o gerente para despedir a caixa que apenas tinha falado que não a atenderia porque aquela fila era para compras de até 10 itens. O que leva alguém a não apenas esquecer sua cruzada anti-corrupção anunciada para quem quiser ouvir (com seus ídolos, judiciários), para reclamar sua distinção como alguém que na prática está acima dessas regras mortais, mas também aterrorizar alguém que provavelmente mora num bairro distante e tem que aturar essas coisas todos os dias, com um sorriso "que madame idiota"?
Sinto que, se esses micropoderes sempre existiram, eles se tornarão mais frequentes no futuro próximo. Mais frequentes e mais cruéis. É uma espécie de catarse mesquinha, de transferência de angústia. Do mesmo tipo presente na turba justiceira que gostaria de linchar dois assassinos (que, entretanto, agiram sem que ninguém interferisse). Ou do gozo sádico com as imagens de um ex-governador esperneando ao ser preso.
Mas é também em momentos como esses, em que temos que pesar e lamentar, que as pessoas mostram o que têm de melhor, por outro lado. Há dois dias uma querida professora, que tanto me ajudou, faleceu - apenas dois meses após o marido, que também foi meu professor. Suspeito que de tristeza. Dei e recebi abraços sinceros em quem foi ao cemitério se despedir; de quem se uniu para se confortar. E ouvi emocionado um dos fundadores do departamento do qual faço parte, que recebeu essa professora no primeiro ano do funcionamento desse departamento, se desculpar por alguns pensamentos confusos, mas guiados pela certeza de que esse casal que ajudou a criar algo do nada (literalmente, como atestam as fotografias de 45 anos atrás, de uma unicamp cheia de terra e mato) tinha que ser lembrado. Como tinha que ser lembrada a ideia que originou uma faculdade, possibilitada apenas por um companheirismo e uma colaboração verdadeira, em condições terríveis, no meio de uma ditadura - apenas com a vontade de criar algo bonito. Uma ideia para ser lembrada, celebrada e defendida.
Aqui estou eu, herdeiro dessa ideia. Assustado com o desmonte que se anuncia e já é sentido, a toque de caixa, alimentado por esse mesmo ódio e uma intransigência que busca culpados - preferencialmente naquilo que é público, de um bem comum, um cuidar comum, que agora é acusado de expropriar aquilo que já é privilégio de poucos, que virou, num discurso injusto e preguiçoso, algo confundido com assistencialismo e com ineficiência. Mas isso tudo só me dá a certeza de que lado devo estar, com quem quero estar abraçado, com quem quero continuar uma ideia tão bonita que se aproxima de uma metade de século agora. Mas também de outras coisas que valem a pena - os amores e as amizades.
Fiquei pensando muito, nesses dias, em algo que já tem uma profundidade histórica suficiente - e talvez ideal - para perceber como são pessoas reais que fazem algo maior do que elas. E acho que não precisa de muito para isso. Basta cultivar gentilezas e afetos no dia a dia, perceber que não é legal transferir frustrações aos outros - de ter consciência de quando se está fazendo isso e parar. A outros que podem ser conhecidos, mas sobretudo aos desconhecidos.
Hoje em dia me emociono com pouco. Com um motorista que pára o fluxo do trânsito para alguém passar. Com alguém que segura a porta do elevador. Com alguém que dá bom dia. Com as iniciativas e projetos de caridade.
Com aquilo que não cria ilhas.
Liçõeszinhas para 2017. Tentarei contar por aqui um pouco como as aprendo.
sexta-feira, dezembro 30, 2016
sexta-feira, novembro 04, 2016
Tchau, Nina
Ela chegou na nossa vida 15 anos atrás.
Eu e a Dani, ainda namorandívoros que éramos, estávamos nos preparando para um grande passo em nossas vidas: morar juntos. Compramos o que nosso pouco dinheirinho permitia, ganhamos outras coisas dos amigos e da família, e montamos uma casinha - a mesma onde estamos até hoje.
E resolvemos que seríamos uma família de mais de dois. Fomos na casa de uma criadora de gatos e escolhemos um lindo gatinho marrom, de olhos grandes e amendoados, de nome Lion - que logo mudamos para um que achávamos que combinava com ele: Puskas, em homenagem ao jogador húngaro. Aí depois que estava grandinho o suficiente fomos pegá-lo para levar para casa. Mas ali, meio ignorada pelos outros pretendentes de humanos cuidadores, estava uma gatinha mirradinha, de língua pra fora, com dois dentinhos que não cabiam na boca (de vez em quando a chamávamos de "gatinha javali"). Não precisou de muito encorajamento da dona para que nosso coração derretesse e resolvêssemos abrir mais uma vaga na família e levá-la junto. Já tivemos uma outra Nina antes, que ficou com uma amiga nossa, mas resolvemos repetir o nome, que combinava tanto com aquela gata pequenina e totalmente branca. Ao longo do tempo ela ganharia outros apelidos: Ninalina, Gata Branca, Sagatiba, Sagatibinha Branquinha do Natal... mas para ela, Niiinaaaa - aquele som que ouvia e que sabia que estávamos chamando e que significava que poderia produzir um pouquinho de amor por dia.
E lá se foram 15 anos de algo que me fez descobrir o que era esse "amor incondicional" de que ouvia falar. Aquele olhar apaixonado, de quando subia no meu peito, deitava o queixo e se colocava a ronronar sem parar; sempre olhando nos meus olhos. Sempre que estava sentado na cadeira do escritório, ou no sofá da sala, ela vinha e pulava no colo. Se não vinha e pulava, eu chamava "Niiinaaaa", e zás, ela vinha correndo!
15 anos de muito companheirismo. Aquelas horas na frente do computador, escrevendo tese, lá vinha ela, chamando a atenção, sentar no teclado e me falar que havia outras coisas importantes na vida, para eu não me esquecer disso. Lição que acho que nunca aprendi de fato nesses anos todos. Talvez agora, quem sabe. Uma última coisa que a Nina fez por mim. A real medida das coisas, sabe?
Pois as últimas semanas foram as mais difíceis da minha vida. Acho que nunca sofri tanto. Vendo aquela gatinha intrépida e acrobata ficar cada vez mais magrinha, mais fraquinha. Não sabia que tinha tantas lágrimas, ou que o coração podia realmente se partir. No final ela deixou de andar, tínhamos que dar água e comida na boca, dar um banhinho porque ela não conseguia mais ir no banheiro sozinha. E mesmo assim ela não sofreu. Só parecia que estava parando de funcionar. Mas até hoje de manhã ainda ronronava, feliz com pouca coisa. Um cafuné, uma gotinha de água, uma conversa e um pouco de atenção. Ela não sofreu, mas eu e a Dani ficamos com nossos corações pequenos, apertados. O Puskas sabia que algo acontecia, respeitava e dava distância.
Foi a coisa mais dura que já fiz, vê-la partir e dar o último suspirinho, quase imperceptível, deitadinha na cama conosco. Já perdi outros bichinhos, mas nunca assim. E que injustiça, devem pensar "que drama, que maluco, tanta desgraça no mundo, tanta gente precisando de ajuda e faz esse chororô todo por uma gata". Só que eu não me arrependo de ter dado a maior parte de mim nessas últimas semanas. Vivi o resto no modo básico, aquele suficiente. Deixei os prazos estourarem. Os preciosos e vitais e-mails sem responder. A incontornável arena política das redes sociais esbravejando sozinha. Pelo menos por um tempo, o tempo dela.
O caso é que nesses últimos dias eu me dei conta de algumas coisas. Talvez a principal é que o mundo é pequeno. E é essa pequenez que importa. Uma vidinha felina, que talvez não importe muito no grande esquema das coisas. Pouca gente a conheceu. Ela não inventou nenhuma vacina, ou liderou uma revolução. Mas era a criatura mais carinhosa e doce que podia existir. E, ainda que pequena, levinha e frágil, também corajosa e destemida. Por um mês ela ficou ainda conosco, nos dando chance de nos despedir aos poucos. E sua passagem por aqui, um cuidado mútuo - ela da gente, nós dela - valeu tudo. E digo, tudo. Colocamos as coisas em perspectiva. Nos salvamos - e, fazendo esse pequeno ato particular, todo o universo ficou mais bonito. E demos e ganhamos sentido. Aquela coisa paradoxalmente estranha, que só dá para entender nessas horas. Quando tudo é salvo nos pequenos amores, não importa qual seja. Afinal, o mundo é pequeno, você sabia? Nos resta entender que não é preciso muito de nós para povoá-lo, e que é um desperdício nos esgarçarmos muito. Cultive seus pequenos-grandes amores. Eles são raros e vale a pena cuidar. Mesmo que a saudade, depois, doa.
Lá foi sentar em outros teclados de computador. Lá foi caçar bichinhos nos sonhos.
Eu e a Dani, ainda namorandívoros que éramos, estávamos nos preparando para um grande passo em nossas vidas: morar juntos. Compramos o que nosso pouco dinheirinho permitia, ganhamos outras coisas dos amigos e da família, e montamos uma casinha - a mesma onde estamos até hoje.
E resolvemos que seríamos uma família de mais de dois. Fomos na casa de uma criadora de gatos e escolhemos um lindo gatinho marrom, de olhos grandes e amendoados, de nome Lion - que logo mudamos para um que achávamos que combinava com ele: Puskas, em homenagem ao jogador húngaro. Aí depois que estava grandinho o suficiente fomos pegá-lo para levar para casa. Mas ali, meio ignorada pelos outros pretendentes de humanos cuidadores, estava uma gatinha mirradinha, de língua pra fora, com dois dentinhos que não cabiam na boca (de vez em quando a chamávamos de "gatinha javali"). Não precisou de muito encorajamento da dona para que nosso coração derretesse e resolvêssemos abrir mais uma vaga na família e levá-la junto. Já tivemos uma outra Nina antes, que ficou com uma amiga nossa, mas resolvemos repetir o nome, que combinava tanto com aquela gata pequenina e totalmente branca. Ao longo do tempo ela ganharia outros apelidos: Ninalina, Gata Branca, Sagatiba, Sagatibinha Branquinha do Natal... mas para ela, Niiinaaaa - aquele som que ouvia e que sabia que estávamos chamando e que significava que poderia produzir um pouquinho de amor por dia.
E lá se foram 15 anos de algo que me fez descobrir o que era esse "amor incondicional" de que ouvia falar. Aquele olhar apaixonado, de quando subia no meu peito, deitava o queixo e se colocava a ronronar sem parar; sempre olhando nos meus olhos. Sempre que estava sentado na cadeira do escritório, ou no sofá da sala, ela vinha e pulava no colo. Se não vinha e pulava, eu chamava "Niiinaaaa", e zás, ela vinha correndo!
15 anos de muito companheirismo. Aquelas horas na frente do computador, escrevendo tese, lá vinha ela, chamando a atenção, sentar no teclado e me falar que havia outras coisas importantes na vida, para eu não me esquecer disso. Lição que acho que nunca aprendi de fato nesses anos todos. Talvez agora, quem sabe. Uma última coisa que a Nina fez por mim. A real medida das coisas, sabe?
Pois as últimas semanas foram as mais difíceis da minha vida. Acho que nunca sofri tanto. Vendo aquela gatinha intrépida e acrobata ficar cada vez mais magrinha, mais fraquinha. Não sabia que tinha tantas lágrimas, ou que o coração podia realmente se partir. No final ela deixou de andar, tínhamos que dar água e comida na boca, dar um banhinho porque ela não conseguia mais ir no banheiro sozinha. E mesmo assim ela não sofreu. Só parecia que estava parando de funcionar. Mas até hoje de manhã ainda ronronava, feliz com pouca coisa. Um cafuné, uma gotinha de água, uma conversa e um pouco de atenção. Ela não sofreu, mas eu e a Dani ficamos com nossos corações pequenos, apertados. O Puskas sabia que algo acontecia, respeitava e dava distância.
Foi a coisa mais dura que já fiz, vê-la partir e dar o último suspirinho, quase imperceptível, deitadinha na cama conosco. Já perdi outros bichinhos, mas nunca assim. E que injustiça, devem pensar "que drama, que maluco, tanta desgraça no mundo, tanta gente precisando de ajuda e faz esse chororô todo por uma gata". Só que eu não me arrependo de ter dado a maior parte de mim nessas últimas semanas. Vivi o resto no modo básico, aquele suficiente. Deixei os prazos estourarem. Os preciosos e vitais e-mails sem responder. A incontornável arena política das redes sociais esbravejando sozinha. Pelo menos por um tempo, o tempo dela.
O caso é que nesses últimos dias eu me dei conta de algumas coisas. Talvez a principal é que o mundo é pequeno. E é essa pequenez que importa. Uma vidinha felina, que talvez não importe muito no grande esquema das coisas. Pouca gente a conheceu. Ela não inventou nenhuma vacina, ou liderou uma revolução. Mas era a criatura mais carinhosa e doce que podia existir. E, ainda que pequena, levinha e frágil, também corajosa e destemida. Por um mês ela ficou ainda conosco, nos dando chance de nos despedir aos poucos. E sua passagem por aqui, um cuidado mútuo - ela da gente, nós dela - valeu tudo. E digo, tudo. Colocamos as coisas em perspectiva. Nos salvamos - e, fazendo esse pequeno ato particular, todo o universo ficou mais bonito. E demos e ganhamos sentido. Aquela coisa paradoxalmente estranha, que só dá para entender nessas horas. Quando tudo é salvo nos pequenos amores, não importa qual seja. Afinal, o mundo é pequeno, você sabia? Nos resta entender que não é preciso muito de nós para povoá-lo, e que é um desperdício nos esgarçarmos muito. Cultive seus pequenos-grandes amores. Eles são raros e vale a pena cuidar. Mesmo que a saudade, depois, doa.
Lá foi sentar em outros teclados de computador. Lá foi caçar bichinhos nos sonhos.
terça-feira, julho 05, 2016
A educação pública, ou a alegria da primeira pesquisa
O dia que sai a lista de bolsas aprovadas de Iniciação Científica da universidade é um dos mais felizes. Já há alguns anos que eu abro o documento nesse dia e vou vendo todo mundo que é do meu instituto. Algumas pessoas foram meus alunos, alguns não, mas é uma felicidade enorme mesmo.
Já deve ter acontecido com todo mundo uma coisa realmente incrível e que lava a alma: de descobrir, com surpresa, que algo muito bacana existe. O inesperado mesmo! A gente vive em uma lógica tão inescapável do serviço, que é fácil esquecer que existem políticas sociais desse tipo. Porque é algo acadêmico, mas é política social. E não tem nada a ver com caridade, mesmo sendo público e gratuito. É o que impulsiona a ciência e a cidadania em um país. É preciso esquecer de vez em quando as metáforas produtivistas, mas vai lá: nunca um investimento tão pequeno produziu tanto.
Porque são bolsas muito humildes, insuficientes na verdade. Mas as pessoas ficam felizes demais - e têm um impacto enorme sobre suas vidas! Não canso de me emocionar vendo isso no que meus orientandos falam e demonstram.
Isso é importantíssimo para a grande maioria dos estudantes que são contemplados com essa bolsa. Financeiramente, claro, para a maioria. Mas há algo ainda mais fundamental, ainda mais fascinante, ao mesmo tempo que intangível: a oportunidade de fazer a primeira pesquisa. A primeira pesquisa, provavelmente, é uma das primeiras coisas autorais que fazemos academicamente. E isso não pode ser subestimado.
Eu adoro fazer pesquisa. Mas a primeira tem um lugarzinho especial. Lembro daquela sensação de descoberta, de começar a entender alguma coisa, de produzir uma interpretação sobre aquilo que, por mais que você tenha ajuda de colegas, orientadores ou orientadoras, é seu e que mais ninguém fez daquela maneira. É isso arte? Talvez sim. Gosto de acreditar que sim, pelo menos em parte, essa que eu estou dizendo que é tão bonita. É difícil precisar o que isso faz por uma pessoa, mas sei que é grande.
Não deixo de me surpreender com essas coisas. Ainda mais porque estamos acostumados com a lógica do "pago", do "serviço". Nunca fiz IC. Comecei no mestrado mesmo. Mas lembro até hoje quando a secretária da pós ligou em casa e me disse que eu teria uma bolsa de estudos. Achei aquilo tão surreal que por pouco eu fico sem, porque eu não sabia que era tudo bem aceitar.
Minha família tem origens muito humildes. Certamente por isso fizeram questão de me proporcionar estudo. Infelizmente, na minha época, um bom estudo era sinônimo de escola particular - algo que meus pais não tiveram, mas achavam que valia a pena proporcionar aos filhos. Minha formação começou aí, mas ao mesmo tempo eu nunca deixei de me espantar de fato com o que há de público e gratuito - e o bem que isso faz. Essas oportunidades, para muita gente, começam na universidade pública. E, para muitas dessas pessoas, são coisas como uma bolsa de IC para pesquisa que viabilizam - em todos os sentidos - a educação e a formação para suas vidas. Para mim, que estou há mais de 20 anos em uma universidade dessas, é certamente minha vida. E, nessas horas, essa surpresa, do algo bonito que existe e merece ser defendido, faz um bem tremendo.
Já deve ter acontecido com todo mundo uma coisa realmente incrível e que lava a alma: de descobrir, com surpresa, que algo muito bacana existe. O inesperado mesmo! A gente vive em uma lógica tão inescapável do serviço, que é fácil esquecer que existem políticas sociais desse tipo. Porque é algo acadêmico, mas é política social. E não tem nada a ver com caridade, mesmo sendo público e gratuito. É o que impulsiona a ciência e a cidadania em um país. É preciso esquecer de vez em quando as metáforas produtivistas, mas vai lá: nunca um investimento tão pequeno produziu tanto.
Porque são bolsas muito humildes, insuficientes na verdade. Mas as pessoas ficam felizes demais - e têm um impacto enorme sobre suas vidas! Não canso de me emocionar vendo isso no que meus orientandos falam e demonstram.
Isso é importantíssimo para a grande maioria dos estudantes que são contemplados com essa bolsa. Financeiramente, claro, para a maioria. Mas há algo ainda mais fundamental, ainda mais fascinante, ao mesmo tempo que intangível: a oportunidade de fazer a primeira pesquisa. A primeira pesquisa, provavelmente, é uma das primeiras coisas autorais que fazemos academicamente. E isso não pode ser subestimado.
Eu adoro fazer pesquisa. Mas a primeira tem um lugarzinho especial. Lembro daquela sensação de descoberta, de começar a entender alguma coisa, de produzir uma interpretação sobre aquilo que, por mais que você tenha ajuda de colegas, orientadores ou orientadoras, é seu e que mais ninguém fez daquela maneira. É isso arte? Talvez sim. Gosto de acreditar que sim, pelo menos em parte, essa que eu estou dizendo que é tão bonita. É difícil precisar o que isso faz por uma pessoa, mas sei que é grande.
Não deixo de me surpreender com essas coisas. Ainda mais porque estamos acostumados com a lógica do "pago", do "serviço". Nunca fiz IC. Comecei no mestrado mesmo. Mas lembro até hoje quando a secretária da pós ligou em casa e me disse que eu teria uma bolsa de estudos. Achei aquilo tão surreal que por pouco eu fico sem, porque eu não sabia que era tudo bem aceitar.
Minha família tem origens muito humildes. Certamente por isso fizeram questão de me proporcionar estudo. Infelizmente, na minha época, um bom estudo era sinônimo de escola particular - algo que meus pais não tiveram, mas achavam que valia a pena proporcionar aos filhos. Minha formação começou aí, mas ao mesmo tempo eu nunca deixei de me espantar de fato com o que há de público e gratuito - e o bem que isso faz. Essas oportunidades, para muita gente, começam na universidade pública. E, para muitas dessas pessoas, são coisas como uma bolsa de IC para pesquisa que viabilizam - em todos os sentidos - a educação e a formação para suas vidas. Para mim, que estou há mais de 20 anos em uma universidade dessas, é certamente minha vida. E, nessas horas, essa surpresa, do algo bonito que existe e merece ser defendido, faz um bem tremendo.
terça-feira, junho 14, 2016
Navegando
Hoje me peguei pensando no longo caminho que eu fazia, impulsionado por um namorico daqueles quase não mais adolescentes, entre Campo Grande e Niterói. Quase namorava uma moça que fazia economia na UFF.
Ia ao Rio, ficar na casa dos meus primos em Campo Grande, para de lá ficar algumas horas, as vezes alguns dias, com ela, em terras fluminenses. O longo, longo... longo e estranho percurso pela Brasil, naqueles ônibus lotados, suados, quase tombando em curvas rebeldes e teatrais. A perambulação pela Praça XV, o desviar das bisnagas de urina, da memória em fuga. E então os longos minutos embalado pelo balançar lento da barca, que avançava com preguiça, como uma grande lesma marinha, ruminando a água verde da baía e expelindo espuma branca como rastro. E, depois, toda a volta, com a testa encostada no vidro tremelizente do coletivo vazio, carregando as almas esgotadas, olhando para o escuro de fora com os olhos desfocados e baixos.
Como achava aquilo tudo esquisitamente mágico... as ruas feias, as pessoas de colarinho aberto andando apressadas... o mar lindo - ao Rio nunca faltou o sucesso do casamento com a natureza.
Vi o museu espaçonave de Niemeyer ser construído. Fui lá quando abriu, olhar aquela linda paisagem, mas duvidoso se ela não teria sido de alguma maneira estragada (quem lembra do mirante sem todo aquele concreto modernista? Há ali um tipo de mais valia bizarra, em que aquilo que sempre esteve ali começou a ser apreciado por detrás de um vidro pretensioso).
Daqueles tempos só guardei as lembranças das travessias. Da água salgada, dos malucos, das arquiteturas bonitas do Centro, daquelas ilhas de namorados, espalhadas pela Guanabara. Da moça, uma amargura rala, que nem se presta a ser trauma daqueles que você confidencia com uma garrafa de vinho, um vazio que só as medidas melodramáticas pode construir: queima tudo! Vidas outras, passageiras. O Rio, este fica. Sans dramas pessoais, mas com todos os dramas pessoais do mundo, reunidos mas nunca a se encontrar. As vezes alguns esbarrões, vislumbres das dores e amores alheios. Capturados de forma tão fugidia que não se espreme nem uma história contada - talvez uma imaginada, inventada. Mas que condensam um algo a mais, que se reproduz ao longo das gerações, mudando apenas de vestidos, de ternos e vestimentas.
Uma boniteza que não precisa ser bonita de fato. Pois está lá ainda.
PS - Este é o post de número 500! Puxa vida...
Ia ao Rio, ficar na casa dos meus primos em Campo Grande, para de lá ficar algumas horas, as vezes alguns dias, com ela, em terras fluminenses. O longo, longo... longo e estranho percurso pela Brasil, naqueles ônibus lotados, suados, quase tombando em curvas rebeldes e teatrais. A perambulação pela Praça XV, o desviar das bisnagas de urina, da memória em fuga. E então os longos minutos embalado pelo balançar lento da barca, que avançava com preguiça, como uma grande lesma marinha, ruminando a água verde da baía e expelindo espuma branca como rastro. E, depois, toda a volta, com a testa encostada no vidro tremelizente do coletivo vazio, carregando as almas esgotadas, olhando para o escuro de fora com os olhos desfocados e baixos.
Como achava aquilo tudo esquisitamente mágico... as ruas feias, as pessoas de colarinho aberto andando apressadas... o mar lindo - ao Rio nunca faltou o sucesso do casamento com a natureza.
Vi o museu espaçonave de Niemeyer ser construído. Fui lá quando abriu, olhar aquela linda paisagem, mas duvidoso se ela não teria sido de alguma maneira estragada (quem lembra do mirante sem todo aquele concreto modernista? Há ali um tipo de mais valia bizarra, em que aquilo que sempre esteve ali começou a ser apreciado por detrás de um vidro pretensioso).
Daqueles tempos só guardei as lembranças das travessias. Da água salgada, dos malucos, das arquiteturas bonitas do Centro, daquelas ilhas de namorados, espalhadas pela Guanabara. Da moça, uma amargura rala, que nem se presta a ser trauma daqueles que você confidencia com uma garrafa de vinho, um vazio que só as medidas melodramáticas pode construir: queima tudo! Vidas outras, passageiras. O Rio, este fica. Sans dramas pessoais, mas com todos os dramas pessoais do mundo, reunidos mas nunca a se encontrar. As vezes alguns esbarrões, vislumbres das dores e amores alheios. Capturados de forma tão fugidia que não se espreme nem uma história contada - talvez uma imaginada, inventada. Mas que condensam um algo a mais, que se reproduz ao longo das gerações, mudando apenas de vestidos, de ternos e vestimentas.
Uma boniteza que não precisa ser bonita de fato. Pois está lá ainda.
PS - Este é o post de número 500! Puxa vida...
domingo, junho 12, 2016
Passeando fora do tempo
Nas rebarbas do congresso em Coimbra, para onde fui na semana passada, passei dois dias em Lisboa, relembrando como gosto daquela cidade.
Na primeira vez que fui, lá pelos idos de 1997, não tinha gostado, na verdade. Era véspera da Expo 98 - aquela coisa esquisita que fizeram com Lisboa - e tudo me parecia um grande canteiro de obras. De bom, mesmo, eu só lembro que se podia fumar em qualquer lugar. Nem queria acender um cigarro no cinema, mas já que podia...
Sobre a Expo, aliás, fico pensando, dá pra se falar muito. É o tipo de remodelagem radical que se faz em uma urbe, que aparentemente deveria revitalizá-la, mas que no fundo é uma forma de algumas pessoas ganharem muito dinheiro e exacerbar as desigualdades urbanas de uma maneira brutal. Sempre é o mesmo discurso, normalmente em Olimpíadas ou grandes eventos: aproveita-se o grande fluxo de capital e de vontade política e investe-se em infra-estrutura. Bem, já vimos que na prática a coisa é bem menos bonita. Descontando-se os superfaturamentos (sempre rondando os grandes empreendimentos), o fato é que é uma oportunidade de ouro pra especulação imobiliária, para a gentrificação progressiva que separa os cada vez mais endinheirados (e ciosos de suas vizinhanças e fronteiras) e aqueles empurrados para as periferias reais e simbólicas da vida. Há algo de muito violento no tipo de rápida transformação citadina que me deixa horrorizado.
Demoraria 15 anos para voltar a Lisboa, para um congresso, justamente. E a mudança foi impressionante. Havia toda uma parte da cidade que antes não existia! Para um lugar tão antigo, onde as construções são as mesmas por décadas ou séculos, isso é ainda mais estranho.
E agora novamente, 5 anos depois dessa penúltima visita, voltei a perambular por Lisboa. Mas evitei toda aquela região do Parque das Nações, insípida, planejada, cheia de shoppings e pavilhões que lembram - certamente não manifestadamente, mas provavelmente não à toa - a megalomania colonial salazariana. Algo com que os portugueses certamente não querem mais fazer associações, mas que está sempre presente, nos pequenos e nos grandes detalhes, incrustado na arquitetura e na paisagem.
Lisboa é uma cidade muitíssimo agradável para andar, a esmo. Para passear, no sentido promenade mesmo. Quando a tarde cai e as luzes (que nunca parecem iluminar de fato) começam a acender eu tenho a impressão de estar em outra época. Os fantasmas que perambulavam por ali ficam mais densos, menos esvoaçantes sob o amarelado dos postes e das grandes lanternas dependuradas e espalhadas pelas ruas.
Eu fico com a impressão de estar em algum quadro pós-impressionista. Daqueles que comentam os costumes da modernidade que chega de repente e que vem substituir o que quer que seja que guardava aqueles espaços que se pode identificar como antigos, velhos mesmo - ainda que teimosos por ir por completo (de onde a tragédia das regiões ultra planejadas). Quadros que anunciam o fim do século XIX, a transição do campo para a cidade, o começo dos estilos modernos. Da vida em movimento quase maníaco de tão constante. Um quadro de Toulouse-Lautrec em alguns momentos, ao pé do castelo de São Jorge, sempre mais cheio de sombras e de recantos mais escuros, de espaços sem muita gente. Ou então um de Degas, junto às pessoas na Alfama e seus vermelhos todos, ou a agitação e boemia da Mouraria. A parte baixa e o Chiado são pintados por outras mãos. Mas talvez por sua movimentação ininterrupta não sejam tão apetitosas ao flâneur que busca essa mediunidade ambulante. Para isso é preciso, precisamente, pausar. Mesmo que rapidamente.
E dessa vez conheci o outro lado do Tejo, o sul, em Cacilhas. Com suas docas decrépitas, os pescadores noturnos, as paredes com os azulejos roídos e progressivamente roubados, não exatamente apagando seu passado, mas paradoxalmente conferindo um ar ainda mais forte, pela ausência cada vez mais presente daquilo que teria existido e que se esvai ano após ano. E de lá, em uma tasca a beira rio, tomando um vinho, comendo um arroz de Tamboril, depois bebericando uma bagaceira que desce rasgando sem queimar, ver o anoitecer me deu a chance de pensar tudo isso, de longe mas não tanto, sobre essa bonita, singular mas familiar e acolhedora cidade.
Na primeira vez que fui, lá pelos idos de 1997, não tinha gostado, na verdade. Era véspera da Expo 98 - aquela coisa esquisita que fizeram com Lisboa - e tudo me parecia um grande canteiro de obras. De bom, mesmo, eu só lembro que se podia fumar em qualquer lugar. Nem queria acender um cigarro no cinema, mas já que podia...
Sobre a Expo, aliás, fico pensando, dá pra se falar muito. É o tipo de remodelagem radical que se faz em uma urbe, que aparentemente deveria revitalizá-la, mas que no fundo é uma forma de algumas pessoas ganharem muito dinheiro e exacerbar as desigualdades urbanas de uma maneira brutal. Sempre é o mesmo discurso, normalmente em Olimpíadas ou grandes eventos: aproveita-se o grande fluxo de capital e de vontade política e investe-se em infra-estrutura. Bem, já vimos que na prática a coisa é bem menos bonita. Descontando-se os superfaturamentos (sempre rondando os grandes empreendimentos), o fato é que é uma oportunidade de ouro pra especulação imobiliária, para a gentrificação progressiva que separa os cada vez mais endinheirados (e ciosos de suas vizinhanças e fronteiras) e aqueles empurrados para as periferias reais e simbólicas da vida. Há algo de muito violento no tipo de rápida transformação citadina que me deixa horrorizado.
Demoraria 15 anos para voltar a Lisboa, para um congresso, justamente. E a mudança foi impressionante. Havia toda uma parte da cidade que antes não existia! Para um lugar tão antigo, onde as construções são as mesmas por décadas ou séculos, isso é ainda mais estranho.
E agora novamente, 5 anos depois dessa penúltima visita, voltei a perambular por Lisboa. Mas evitei toda aquela região do Parque das Nações, insípida, planejada, cheia de shoppings e pavilhões que lembram - certamente não manifestadamente, mas provavelmente não à toa - a megalomania colonial salazariana. Algo com que os portugueses certamente não querem mais fazer associações, mas que está sempre presente, nos pequenos e nos grandes detalhes, incrustado na arquitetura e na paisagem.
Lisboa é uma cidade muitíssimo agradável para andar, a esmo. Para passear, no sentido promenade mesmo. Quando a tarde cai e as luzes (que nunca parecem iluminar de fato) começam a acender eu tenho a impressão de estar em outra época. Os fantasmas que perambulavam por ali ficam mais densos, menos esvoaçantes sob o amarelado dos postes e das grandes lanternas dependuradas e espalhadas pelas ruas.
Eu fico com a impressão de estar em algum quadro pós-impressionista. Daqueles que comentam os costumes da modernidade que chega de repente e que vem substituir o que quer que seja que guardava aqueles espaços que se pode identificar como antigos, velhos mesmo - ainda que teimosos por ir por completo (de onde a tragédia das regiões ultra planejadas). Quadros que anunciam o fim do século XIX, a transição do campo para a cidade, o começo dos estilos modernos. Da vida em movimento quase maníaco de tão constante. Um quadro de Toulouse-Lautrec em alguns momentos, ao pé do castelo de São Jorge, sempre mais cheio de sombras e de recantos mais escuros, de espaços sem muita gente. Ou então um de Degas, junto às pessoas na Alfama e seus vermelhos todos, ou a agitação e boemia da Mouraria. A parte baixa e o Chiado são pintados por outras mãos. Mas talvez por sua movimentação ininterrupta não sejam tão apetitosas ao flâneur que busca essa mediunidade ambulante. Para isso é preciso, precisamente, pausar. Mesmo que rapidamente.
sexta-feira, maio 27, 2016
Um causo de infância
O ano era 1986, ou quem sabe 1987, não muito mais do que isso.
Fiquei décadas sem pensar sobre o assunto, mas ao mesmo tempo agora me lembro muito bem do acontecido. Também pudera, na época nada de muito inusual acontecia naquele pacato bairro universitário, então ainda mais cheio de terrenos baldios do que de casas, onde as pessoas não se davam o trabalho de fechar os portões e as crianças brincavam de rolimã na rua. Um assassinato misterioso inevitavelmente causaria uma forte impressão nos moradores dali.
Eu morava apenas a uma quadra de distância daquela casa - a segunda da esquina, com uma garagem que subia numa grande rampa saindo do nível da rua, e pintada de cores alegres e fortes (lembrança de uma educação liberal às crianças, estimuladas a decorar sua própria casa). Conhecia a vítima apenas de vista, mas era grande amigo de seu sobrinho - um filho de uma brasileira com um inglês, e que tinha nascido em Hong Kong, então colônia britânica - que morava ali perto também. Conta a história que ela morava só com o casal de filhos, depois que o marido, após uma viagem de negócios aos EUA resolveu que lá ficaria, com a namorada americana que conheceu e jurou amar até que dela também se separou não muito tempo depois.
Seja como for, a tragédia parecia iminente àquela família: o menino morreria em um acidente em uma cachoeira alguns meses depois; e da menina só se soube que resolvera se relacionar com um traficante e sumiu do mapa. O fato é que num certo dia encontraram-na - a mãe - morta em casa. Foi um grande choque para todo mundo, e por semanas conversas regadas a medo e teorias as mais delirantes correram de boca em boca, conferindo àquele momento um ar de novela de crimes policiais.
Nenhum sinal de luta. Não se soube com certeza se algo havia sido roubado. Com a exceção de uma calça, quer dizer. Souberam disso porque encontraram apenas as barras, cortadas e deixadas no quarto: o assassino fizera bermudas da calça da moça. Ele deixara suas próprias roupas (um terno marrom bem feito, que indicava se tratar de uma pessoa muito alta), escondidas atrás da máquina de lavar roupas, na área de serviço, ensanguentadas.
Um homem barbudo, de aparência distinta, mas então considerado desconhecido pelos vizinhos havia sido visto na frente da casa, naquele mesma noite (um estranho naquela época era facilmente notado pelos moradores, hábeis em controlar a vida alheia e imprimir um clima de cidade interiorana à região).
Investigações sobre sua identidade mostraram-se fracassadas. Mesmo quando um famoso médico legista (que anos depois teria sua carreira aniquilada por ter sido forçado a alterar um laudo de um caso célebre) pegara o caso e se comprometera a não deixar a investigação esmorecer, depois de meses não se chegou à nenhuma conclusão e a coisa esfriou. Ninguém havia sido sequer interrogado.
Mas corria à boca pequena, essa ferramenta odiosa da maledicência corriqueira, que um senhor, de nome de padre mas também de filósofo romano - Cícero - devia ser o malfeitor. Especulou-se que ele deveria ser o homem misterioso do terno marrom; apesar de à época do crime já ser conhecido naquelas bandas e andar sempre com roupas muito humildes. Afinal, dizia a enviesada lógica dos que precisam encaixar os fatos nas teorias, deveria ser por isso que não o reconheceram então: estava asseadamente e insolitamente trajado.
Não lembro se a fama já existia antes, mas contava-se que ele viera fugido do norte, onde acabou por ter ficado por demais notório por conta de sua ocupação original: matador de aluguel. Foram várias as mortes encomendadas, dizia-se. Perfil ideal para o crime que, se insolúvel na justiça deveria ser determinado, ilustrado e multiplicado pela sabedoria popular.
Esse bode expiatório da necessidade de atribuir culpa a monstros sinistros criados tinha a grande infelicidade de ter um olhar intenso, braços fortes e calejados pelo sol, proferir poucas palavras e adotar uma atitude sorumbática e silenciosa. Eu o conhecia bem: de vez em quando cuidava do jardim de casa, podando os galhos da primavera que crescia demais, ou cortando a grama quando esta ficava cheia de ervas daninhas.
Quando o boato começou a tomar a forma de uma potencial acusação, seo Cícero inteligentemente sumiu.
Lembrei dessa história porque soube que seo Cícero voltou para a região, depois de quase trinta anos. Deve ter mais de 80 anos agora, mas continua cortando galhos de árvore com incansável tenacidade. Do crime não soube se houve mais algum desdobramento. Provavelmente prescreveu e hoje continua apenas como lenda. Daquelas que para quem não a viveu tornou-se uma história para contar no escuro, para coleguinhas impressionáveis e amigos assustadiços.
Fiquei décadas sem pensar sobre o assunto, mas ao mesmo tempo agora me lembro muito bem do acontecido. Também pudera, na época nada de muito inusual acontecia naquele pacato bairro universitário, então ainda mais cheio de terrenos baldios do que de casas, onde as pessoas não se davam o trabalho de fechar os portões e as crianças brincavam de rolimã na rua. Um assassinato misterioso inevitavelmente causaria uma forte impressão nos moradores dali.
Eu morava apenas a uma quadra de distância daquela casa - a segunda da esquina, com uma garagem que subia numa grande rampa saindo do nível da rua, e pintada de cores alegres e fortes (lembrança de uma educação liberal às crianças, estimuladas a decorar sua própria casa). Conhecia a vítima apenas de vista, mas era grande amigo de seu sobrinho - um filho de uma brasileira com um inglês, e que tinha nascido em Hong Kong, então colônia britânica - que morava ali perto também. Conta a história que ela morava só com o casal de filhos, depois que o marido, após uma viagem de negócios aos EUA resolveu que lá ficaria, com a namorada americana que conheceu e jurou amar até que dela também se separou não muito tempo depois.
Seja como for, a tragédia parecia iminente àquela família: o menino morreria em um acidente em uma cachoeira alguns meses depois; e da menina só se soube que resolvera se relacionar com um traficante e sumiu do mapa. O fato é que num certo dia encontraram-na - a mãe - morta em casa. Foi um grande choque para todo mundo, e por semanas conversas regadas a medo e teorias as mais delirantes correram de boca em boca, conferindo àquele momento um ar de novela de crimes policiais.
Nenhum sinal de luta. Não se soube com certeza se algo havia sido roubado. Com a exceção de uma calça, quer dizer. Souberam disso porque encontraram apenas as barras, cortadas e deixadas no quarto: o assassino fizera bermudas da calça da moça. Ele deixara suas próprias roupas (um terno marrom bem feito, que indicava se tratar de uma pessoa muito alta), escondidas atrás da máquina de lavar roupas, na área de serviço, ensanguentadas.
Um homem barbudo, de aparência distinta, mas então considerado desconhecido pelos vizinhos havia sido visto na frente da casa, naquele mesma noite (um estranho naquela época era facilmente notado pelos moradores, hábeis em controlar a vida alheia e imprimir um clima de cidade interiorana à região).
Investigações sobre sua identidade mostraram-se fracassadas. Mesmo quando um famoso médico legista (que anos depois teria sua carreira aniquilada por ter sido forçado a alterar um laudo de um caso célebre) pegara o caso e se comprometera a não deixar a investigação esmorecer, depois de meses não se chegou à nenhuma conclusão e a coisa esfriou. Ninguém havia sido sequer interrogado.
Mas corria à boca pequena, essa ferramenta odiosa da maledicência corriqueira, que um senhor, de nome de padre mas também de filósofo romano - Cícero - devia ser o malfeitor. Especulou-se que ele deveria ser o homem misterioso do terno marrom; apesar de à época do crime já ser conhecido naquelas bandas e andar sempre com roupas muito humildes. Afinal, dizia a enviesada lógica dos que precisam encaixar os fatos nas teorias, deveria ser por isso que não o reconheceram então: estava asseadamente e insolitamente trajado.
Não lembro se a fama já existia antes, mas contava-se que ele viera fugido do norte, onde acabou por ter ficado por demais notório por conta de sua ocupação original: matador de aluguel. Foram várias as mortes encomendadas, dizia-se. Perfil ideal para o crime que, se insolúvel na justiça deveria ser determinado, ilustrado e multiplicado pela sabedoria popular.
Esse bode expiatório da necessidade de atribuir culpa a monstros sinistros criados tinha a grande infelicidade de ter um olhar intenso, braços fortes e calejados pelo sol, proferir poucas palavras e adotar uma atitude sorumbática e silenciosa. Eu o conhecia bem: de vez em quando cuidava do jardim de casa, podando os galhos da primavera que crescia demais, ou cortando a grama quando esta ficava cheia de ervas daninhas.
Quando o boato começou a tomar a forma de uma potencial acusação, seo Cícero inteligentemente sumiu.
Lembrei dessa história porque soube que seo Cícero voltou para a região, depois de quase trinta anos. Deve ter mais de 80 anos agora, mas continua cortando galhos de árvore com incansável tenacidade. Do crime não soube se houve mais algum desdobramento. Provavelmente prescreveu e hoje continua apenas como lenda. Daquelas que para quem não a viveu tornou-se uma história para contar no escuro, para coleguinhas impressionáveis e amigos assustadiços.
quinta-feira, abril 28, 2016
Das amizades e alegrias
Tenho tentado não deixar que tudo de ruim que acontece atualmente me atinja muito.
Não sei se tenho uma estratégia pra isso, exatamente. Por um lado eu tento não ficar vendo notícias toda a hora, mas por outro me sinto mal se não fico a par - e, confesso, há um lado meio masoquista, meio estranho, que me faz voltar, fascinado com o horror, para os portais de notícias. Tenho também tentado não exercitar um lado revanchista, aquele de apontar o dedo e atribuir culpa para lá e para cá, ratatatá. Mas começo a tentar achar onde está o limite da compreensão e do diálogo - acho que é uma dúvida legítima, quando alguém defende um torturador e tem ressonância com gente que aproveita e destila todo o rancor.
Para quem é professor, é uma angústia e tanto - mas que me faz ter ainda mais convicção da importância da sala de aula.
Mas hoje foi um dia em que não consegui não me sentir desanimado, triste, com medo do que ainda vem por aí.
Mas então as minhas amizades, sempre elas, me tiraram do buraco!
O amigo querido - que também é meu aluno - que não tem bolsa, mas fez questão de me pagar um café nessa manhã fria. Outra aluna, que ficou feliz porque consegui pra ela um estágio voluntário, olha só puxa vida o que pode ser alegria também. A antiga professora, agora minha colega e amiga, que me escreveu, feliz, falando que se deu uns dias no Rio pra fazer o que a gente gosta: pesquisar. O amigo que escreveu convidando para o aniversário dele amanhã (ufa, quero aproveitar muito esses momentos de alegria da conversa e da risada). O almoço com outra minha amiga colega de departamento, que anda tão corrida quanto, mas que também faz questão de ter uns minutinhos pra sentar com alguém e bater um papo (ainda que tenha sido inevitável falar de trabalho... argh). Até a fapesp, que hoje deu um tapa com luva de pelica no governador para nos lavar a alma, coitados de nós cientistas sociais "inúteis", e que mandou avisar que concedeu duas bolsas para os alunos do meu projeto (nada prático, ó céus). A Dani, que falou que estava cansadíssima, que não sabia como ia ter forças pra preparar a aula de sociologia amanhã, mas que estava feliz porque a aula de hoje foi boa e as pessoas gostaram. E, agora, outra amiga, também professora, a sempre inspiradora (how do you do it?) Kau, que me mandou os roteiros das aulas que está dando de antropologia - e me fez ter um sorriso enorme no rosto por alguns minutos, lendo as lindas ideias sobre etnografia, sobre cadernos de campo, sobre ver e conhecer (ah, essa antropologia...), ficar viajando nos desenhos e ler as divertidíssimas auto-avaliações.
Tudo isso me fez esquecer um pouco dos problemas todos e ver que, com as amizades, não se está só.
Ainda que me sinta cada vez mais estranhando todo o resto.
Não sei se tenho uma estratégia pra isso, exatamente. Por um lado eu tento não ficar vendo notícias toda a hora, mas por outro me sinto mal se não fico a par - e, confesso, há um lado meio masoquista, meio estranho, que me faz voltar, fascinado com o horror, para os portais de notícias. Tenho também tentado não exercitar um lado revanchista, aquele de apontar o dedo e atribuir culpa para lá e para cá, ratatatá. Mas começo a tentar achar onde está o limite da compreensão e do diálogo - acho que é uma dúvida legítima, quando alguém defende um torturador e tem ressonância com gente que aproveita e destila todo o rancor.
Para quem é professor, é uma angústia e tanto - mas que me faz ter ainda mais convicção da importância da sala de aula.
Mas hoje foi um dia em que não consegui não me sentir desanimado, triste, com medo do que ainda vem por aí.
Mas então as minhas amizades, sempre elas, me tiraram do buraco!
O amigo querido - que também é meu aluno - que não tem bolsa, mas fez questão de me pagar um café nessa manhã fria. Outra aluna, que ficou feliz porque consegui pra ela um estágio voluntário, olha só puxa vida o que pode ser alegria também. A antiga professora, agora minha colega e amiga, que me escreveu, feliz, falando que se deu uns dias no Rio pra fazer o que a gente gosta: pesquisar. O amigo que escreveu convidando para o aniversário dele amanhã (ufa, quero aproveitar muito esses momentos de alegria da conversa e da risada). O almoço com outra minha amiga colega de departamento, que anda tão corrida quanto, mas que também faz questão de ter uns minutinhos pra sentar com alguém e bater um papo (ainda que tenha sido inevitável falar de trabalho... argh). Até a fapesp, que hoje deu um tapa com luva de pelica no governador para nos lavar a alma, coitados de nós cientistas sociais "inúteis", e que mandou avisar que concedeu duas bolsas para os alunos do meu projeto (nada prático, ó céus). A Dani, que falou que estava cansadíssima, que não sabia como ia ter forças pra preparar a aula de sociologia amanhã, mas que estava feliz porque a aula de hoje foi boa e as pessoas gostaram. E, agora, outra amiga, também professora, a sempre inspiradora (how do you do it?) Kau, que me mandou os roteiros das aulas que está dando de antropologia - e me fez ter um sorriso enorme no rosto por alguns minutos, lendo as lindas ideias sobre etnografia, sobre cadernos de campo, sobre ver e conhecer (ah, essa antropologia...), ficar viajando nos desenhos e ler as divertidíssimas auto-avaliações.
Tudo isso me fez esquecer um pouco dos problemas todos e ver que, com as amizades, não se está só.
Ainda que me sinta cada vez mais estranhando todo o resto.
quinta-feira, março 10, 2016
Vozes e cores nos corredores esterelizados
Eu passei os últimos dois dias no principal hospital de Atendimento de Urgência e Emergência do SUS em Campinas, o famoso "Dr. Mário Gatti". Quem morou tempo suficiente em Campinas já ouviu alguma coisa sobre este hospital - e arrisco a dizer que provavelmente não foi algo bacana. E, de fato, o clima lá é bem pesado (em que hospital não seria?). Todos os acidentes, todos os abusos, das pessoas mais humildes da urbe e também de seus arredores, dos que não têm o luxo dos planos de saúde imorais. Mas dois dias lá me fizeram colorir um pouco meus próprios preconceitos.
Não, não fui eu que fiquei internado, apesar de ter passado horas e horas esperando naqueles corredores. Minha mãe foi atropelada por uma moto e foi levada para o Mário Gatti, por ter sido resgatada pelo SAMU, que leva todos os casos para lá. E foi um susto. Enorme. Minha mãe se machucou bastante. Quebrou algumas costelas e uma clavícula. Mas está bem, já preocupada no serviço que vai ficar atrasado. E, por conta disso, acabei ficando, junto com meu irmão e minha cunhada, bastante tempo no hospital.
E as histórias que vi e que ouvi...
Lá testemunhei, em meio ao caos e ao stress do ponto de chegada das ambulâncias do SUS em Campinas, gentilezas perseverantes, muitos sorrisos. Dei risada com os cirurgiões da alegria, que rondavam os corredores brincando com os pacientes cabisbaixos e os parentes preocupados. Mas também vi muita dureza e sofrimento. Lá ouvi muitas tosses, gemidos, angústias, gritos ocasionais, bem como sangue e outros fluidos e detritos suspeitos. Vi chegarem, algemados, vários presidiários com máscaras de proteção, para fazer raios-x (todos sinais de tuberculose?). Vi chegar uma ambulância fechada com cadeado e escoltada por policiais armados para deixar alguém ferido que certamente também era um suspeito de algo. Vi, sobretudo, os dramas das pessoas. Quer dizer, vi pedaços de dramas, alguns mais doídos do que outros.
Vi o seu Geraldo, que é conhecido por todos no PS, e que tanto no primeiro como no segundo dia em que estive lá quis se internar para tomar café e comer um pão. Conheci dona Teresinha, que estava com seu marido, que havia ficado cego recentemente. Vi uma mãe e uma filha, aflitas com a suspeita de que o pai e marido que estava internado, pudesse ter Alzheimer.
E meu coração apertou quando conheci seu Jesus, um senhor de 93 anos, sem família, morador de um abrigo da cidade, e que estava com sua sonda abdominal (que já tinha feito aniversário de 1 mês, segundo sua acompanhante, uma assistente do abrigo) solta, tendo se molhado com urina e sangue: esperou paciente que o pessoal trocasse a sonda e fizessem alguns exames. Vi a hora em que a cuidadora lhe disse que iria sair, por uns 15 minutos, para pegar roupas secas que o motorista do abrigo havia trazido na recepção. Sofri, quando seu Jesus, num suspiro, com um fiapo de voz, embargada e quase inaudível, chorou e pediu que ela não o abandonasse. "Claro que não vou fazer isso, seu Jesus! Não tenho coragem de fazer isso com o senhor. O senhor é meu querido" - foi a resposta. Mas vi como seu Jesus, sentado em sua cadeira de rodas e segurando uma bolsinha preta, continuava com medo, não acreditando na moça, olhando suplicante com olhos embaçados, não só de emoção, mas também de alguma catarata, que lhe apagava junto o corpo.
Não devia ser um sentimento infundado, o do abandono. Enquanto eu continuava esperando notícias sobre minha mãe e a ambulância bonita para levá-la dali, depois de horas naquele caldeirão de tensão, finalmente chorei.
E de fato, pensei, um hospital não é bem um lugar de sofrimento, ou mesmo de morte. É, sobretudo, um lugar de espera. Um lugar em que você pensa sobre o tempo e na deterioração do passar do tempo. Quando você vê sua mãe, seu pai, que deveriam te proteger sempre e serem seus heróis, em toda sua surpreendente fragilidade.
E então, paradoxalmente, com toda essa espera, você vê fragmentos de dramas, pequenas porções de alguma torcida, de um pouco de alívio, de muito pesar. Ali não cabe a revolta. Contra o quê? São histórias que, na maior parte das vezes, você não sabe como começaram, nem como irão terminar. Mas ao mesmo tempo, esperando, sempre esperando, é possível, e inevitável, apreender um pouco mais dessas vidas renitentes, e também resilientes.
Pelo menos algumas vezes.
Numa conversa com aquela senhora que sentou do seu lado, ouvindo trechos de alguma instrução dada por uma enfermeira, por uma médica, por um assistente social. Ou mesmo observando aquele andar a esmo, lento pelo peso do tempo e da espera (sempre ela), sem destino, daqueles que vagam, quase inconscientes, pelos corredores, carregando suas sondas, trajando apenas aventais verde-claros. Sempre existe pelo menos um desses, as quase almas penadas de hospital. Esses que são quase doloridos de olhar.
E com toda essa torrente de vidas assustadas, renovada todos os dias, é incrível que aqueles enfermeiros e enfermeiras, médicas e médicos, assistentes sociais, faxineiras e faxineiros, seguranças, responsáveis pela manutenção, consigam ser corteses, te tratar com humanidade e solidariedade. Fazer o possível, entre uma urgência e outra, para te ajudar um pouco - em alguns casos te dando seus telefones pessoais, já que estavam no fim do turno e se colocavam a disposição se fosse preciso!
Na viagem pela ambulância (a primeira vez que fiz uma, consciente) conheci mais dessas pessoas especiais. O motorista, que disse que ganhava muito mais como cicerone de um famoso cantor sertanejo, me assegurou que não se arrepende de ter trocado sua carreira antiga e virado socorrista do SAMU, tantos anos atrás agora. Ganhar menos, trabalhar jornadas extenuantes, flertar com úlceras nervosas, traçar estratégias para atender um chamado numa favela ou num presídio (pois disso depende sua integridade física)... mas aprendeu o que é a vida.
E fiz questão de agradecer todas as pessoas que nos ajudaram nesses dias. É o mínimo a se fazer, para essas que são as pessoas mais próximas da prática altruísta que eu conheço. E meu respeito pelo SUS, com os problemas que existem (e, se existem, não são por causa dessas pessoas que trabalham no dia a dia do hospital), apenas aumentou. O que acontece ali é de fato tirar leite de pedra. E é de tirar o chapéu, para aprender a ser mais grato, menos cínico.
Não, não fui eu que fiquei internado, apesar de ter passado horas e horas esperando naqueles corredores. Minha mãe foi atropelada por uma moto e foi levada para o Mário Gatti, por ter sido resgatada pelo SAMU, que leva todos os casos para lá. E foi um susto. Enorme. Minha mãe se machucou bastante. Quebrou algumas costelas e uma clavícula. Mas está bem, já preocupada no serviço que vai ficar atrasado. E, por conta disso, acabei ficando, junto com meu irmão e minha cunhada, bastante tempo no hospital.
E as histórias que vi e que ouvi...
Lá testemunhei, em meio ao caos e ao stress do ponto de chegada das ambulâncias do SUS em Campinas, gentilezas perseverantes, muitos sorrisos. Dei risada com os cirurgiões da alegria, que rondavam os corredores brincando com os pacientes cabisbaixos e os parentes preocupados. Mas também vi muita dureza e sofrimento. Lá ouvi muitas tosses, gemidos, angústias, gritos ocasionais, bem como sangue e outros fluidos e detritos suspeitos. Vi chegarem, algemados, vários presidiários com máscaras de proteção, para fazer raios-x (todos sinais de tuberculose?). Vi chegar uma ambulância fechada com cadeado e escoltada por policiais armados para deixar alguém ferido que certamente também era um suspeito de algo. Vi, sobretudo, os dramas das pessoas. Quer dizer, vi pedaços de dramas, alguns mais doídos do que outros.
Vi o seu Geraldo, que é conhecido por todos no PS, e que tanto no primeiro como no segundo dia em que estive lá quis se internar para tomar café e comer um pão. Conheci dona Teresinha, que estava com seu marido, que havia ficado cego recentemente. Vi uma mãe e uma filha, aflitas com a suspeita de que o pai e marido que estava internado, pudesse ter Alzheimer.
E meu coração apertou quando conheci seu Jesus, um senhor de 93 anos, sem família, morador de um abrigo da cidade, e que estava com sua sonda abdominal (que já tinha feito aniversário de 1 mês, segundo sua acompanhante, uma assistente do abrigo) solta, tendo se molhado com urina e sangue: esperou paciente que o pessoal trocasse a sonda e fizessem alguns exames. Vi a hora em que a cuidadora lhe disse que iria sair, por uns 15 minutos, para pegar roupas secas que o motorista do abrigo havia trazido na recepção. Sofri, quando seu Jesus, num suspiro, com um fiapo de voz, embargada e quase inaudível, chorou e pediu que ela não o abandonasse. "Claro que não vou fazer isso, seu Jesus! Não tenho coragem de fazer isso com o senhor. O senhor é meu querido" - foi a resposta. Mas vi como seu Jesus, sentado em sua cadeira de rodas e segurando uma bolsinha preta, continuava com medo, não acreditando na moça, olhando suplicante com olhos embaçados, não só de emoção, mas também de alguma catarata, que lhe apagava junto o corpo.
Não devia ser um sentimento infundado, o do abandono. Enquanto eu continuava esperando notícias sobre minha mãe e a ambulância bonita para levá-la dali, depois de horas naquele caldeirão de tensão, finalmente chorei.
E de fato, pensei, um hospital não é bem um lugar de sofrimento, ou mesmo de morte. É, sobretudo, um lugar de espera. Um lugar em que você pensa sobre o tempo e na deterioração do passar do tempo. Quando você vê sua mãe, seu pai, que deveriam te proteger sempre e serem seus heróis, em toda sua surpreendente fragilidade.
E então, paradoxalmente, com toda essa espera, você vê fragmentos de dramas, pequenas porções de alguma torcida, de um pouco de alívio, de muito pesar. Ali não cabe a revolta. Contra o quê? São histórias que, na maior parte das vezes, você não sabe como começaram, nem como irão terminar. Mas ao mesmo tempo, esperando, sempre esperando, é possível, e inevitável, apreender um pouco mais dessas vidas renitentes, e também resilientes.
Pelo menos algumas vezes.
Numa conversa com aquela senhora que sentou do seu lado, ouvindo trechos de alguma instrução dada por uma enfermeira, por uma médica, por um assistente social. Ou mesmo observando aquele andar a esmo, lento pelo peso do tempo e da espera (sempre ela), sem destino, daqueles que vagam, quase inconscientes, pelos corredores, carregando suas sondas, trajando apenas aventais verde-claros. Sempre existe pelo menos um desses, as quase almas penadas de hospital. Esses que são quase doloridos de olhar.
E com toda essa torrente de vidas assustadas, renovada todos os dias, é incrível que aqueles enfermeiros e enfermeiras, médicas e médicos, assistentes sociais, faxineiras e faxineiros, seguranças, responsáveis pela manutenção, consigam ser corteses, te tratar com humanidade e solidariedade. Fazer o possível, entre uma urgência e outra, para te ajudar um pouco - em alguns casos te dando seus telefones pessoais, já que estavam no fim do turno e se colocavam a disposição se fosse preciso!
Na viagem pela ambulância (a primeira vez que fiz uma, consciente) conheci mais dessas pessoas especiais. O motorista, que disse que ganhava muito mais como cicerone de um famoso cantor sertanejo, me assegurou que não se arrepende de ter trocado sua carreira antiga e virado socorrista do SAMU, tantos anos atrás agora. Ganhar menos, trabalhar jornadas extenuantes, flertar com úlceras nervosas, traçar estratégias para atender um chamado numa favela ou num presídio (pois disso depende sua integridade física)... mas aprendeu o que é a vida.
E fiz questão de agradecer todas as pessoas que nos ajudaram nesses dias. É o mínimo a se fazer, para essas que são as pessoas mais próximas da prática altruísta que eu conheço. E meu respeito pelo SUS, com os problemas que existem (e, se existem, não são por causa dessas pessoas que trabalham no dia a dia do hospital), apenas aumentou. O que acontece ali é de fato tirar leite de pedra. E é de tirar o chapéu, para aprender a ser mais grato, menos cínico.
sábado, março 05, 2016
A vida felina
Ontem se foi o gatinho Moustache. Uma das mais boazinhas criaturas que já existiu. Como eu falei num post anterior, quando ele começou a ficar ruinzinho, ele apanhava de todo mundo: do irmão, da mãe, das cachorras que minha mãe tinha (essa vez que elas resolveram pegá-lo o coitado quase foi desta pra melhor)... Mas nunca revidava. Apenas olhava com uma cara de "puxa, que foi que eu fiz?"...
Ele estava sofrendo bastante nas últimas semanas, mas não reclamou. Suportou tudo de uma maneira que nos devia envergonhar. Envergonhar pelo simples fato de mostrar um caráter (sim, gatos têm isso) exemplar. De mostrar o que importa na vida, apreciá-la de verdade. Eu ia visitar na clínica onde ele ficava internado quando piorava mais e saia com o coração apertado. Ele melhorava um pouco, nos dava esperança, parecendo querer nos poupar do sofrimento de vê-lo assim, e depois voltava a ficar ruim, sem forças.
Claro, nem tudo foi sofrimento na vida do Moustache. Ele adorava subir no colo e receber carinho da minha prima. E de mim também. Podia ficar semanas vem vê-lo, mas ele nunca me fez sentir culpado por isso, como poderia, por eu ser tão relapso. Tinha uma amor incondicional, sem mesquinharias ou cobranças. E adorava subir no colo e ficar esfregando o nariz na minha barriga. Acho que levou uma boa vida, feliz.
No final o alento foi que morreu em casa, e não internado, como ficou por tanto tempo. Fiquei triste, mas aliviado por ele poder descansar de uma boa maneira.
O dia foi blue. Mas hoje também, coincidentemente, fui ver com a Dani uma ninhada de gatinhos que minha cunhada pensa em adotar. São filhinhos de uma gata que dois gatófilos muito generosos resgataram, grávida, da rua. Aí aqueles barulhinhos de filhotes, a brincadeira de subir um em cima do outro, fizeram a mim e a Dani sorrirmos um pouco. Poucas coisas são tão bonitas quanto o bem estar que um bichinho pode dar.
Ele estava sofrendo bastante nas últimas semanas, mas não reclamou. Suportou tudo de uma maneira que nos devia envergonhar. Envergonhar pelo simples fato de mostrar um caráter (sim, gatos têm isso) exemplar. De mostrar o que importa na vida, apreciá-la de verdade. Eu ia visitar na clínica onde ele ficava internado quando piorava mais e saia com o coração apertado. Ele melhorava um pouco, nos dava esperança, parecendo querer nos poupar do sofrimento de vê-lo assim, e depois voltava a ficar ruim, sem forças.
Claro, nem tudo foi sofrimento na vida do Moustache. Ele adorava subir no colo e receber carinho da minha prima. E de mim também. Podia ficar semanas vem vê-lo, mas ele nunca me fez sentir culpado por isso, como poderia, por eu ser tão relapso. Tinha uma amor incondicional, sem mesquinharias ou cobranças. E adorava subir no colo e ficar esfregando o nariz na minha barriga. Acho que levou uma boa vida, feliz.
No final o alento foi que morreu em casa, e não internado, como ficou por tanto tempo. Fiquei triste, mas aliviado por ele poder descansar de uma boa maneira.
O dia foi blue. Mas hoje também, coincidentemente, fui ver com a Dani uma ninhada de gatinhos que minha cunhada pensa em adotar. São filhinhos de uma gata que dois gatófilos muito generosos resgataram, grávida, da rua. Aí aqueles barulhinhos de filhotes, a brincadeira de subir um em cima do outro, fizeram a mim e a Dani sorrirmos um pouco. Poucas coisas são tão bonitas quanto o bem estar que um bichinho pode dar.
sexta-feira, fevereiro 26, 2016
Das belezas da universidade pública
Não contei muito do que aconteceu durante o hiato de 5 anos desse blog. Mas tenho planos de aos poucos fazer isso.
Uma das coisas mais bacanas que aconteceu foi que, daquele momento de estudante em Belém, durante uma RBA (Reunião Brasileira de Antropologia), já doutor, mas ainda desempregado, para cá, eu virei, justamente, professor na universidade que me formou (o hiato mais ou menos coincidiu com um período estranho, límbico, de não-lugar, quando você já se doutorou, não é mais estudante, mas também não passou em nenhum concurso... momento que as pessoas acabam preenchendo cada vez mais com bicos, pós-doutorados e muita angústia sobre o que fazer da vida). Professor, agora, contratado de fato, mas por quatro anos, naquele esquema emocionante de posdoc.
E já tenho várias histórias pra contar sobre essa aventura que é dar aula (e lá se vão quase sete anos desde que comecei a dar aula, cinco desses realmente pra valer - uma diferente da outra, completamente imprevisíveis). Mas ontem lembrei, dando risada, de um dia em específico. Creio que era 2013, ou então 2012, e eu dava uma disciplina na graduação em Ciências Sociais. Talvez Antropologia III, ou Antropologia IV, obrigatórias. Turma lotada, sempre rolam seminários bacanas por parte dos alunos (gosto de deixar como atividade opcional, não é todo mundo que gosta de dar seminário - mas quando é bacana, é muito bacana!).
Estávamos discutindo um livro da Maria Elvira, Nas Redes do Sexo, que é sobre o mercado pornográfico brasileiro (livrão, aliás). Eu sempre gostei de dar liberdade para os alunos prepararem os seminários - a criatividade é geralmente grande e sempre veem boas surpresas. Bem, no seminário anterior, que era sobre Tristes Trópicos, o grupo tinha passado um video com uma entrevista do Lévi-Strauss falando sobre o Brasil, e foi super legal (acho que foi nesse ano também que um grupo passou um video do Antonio Cândido falando sobre o caipira, bem como umas fotos de quadros do Almeida Júnior - o seminário, claro, era do lindo Parceiros do Rio Bonito). Pois bem, o grupo, talvez um pouco provocativamente, pra ver até onde ia a boa vontade do professor, resolveu passar em sala um video pornô feminista. A ideia era discutir a possibilidade de pornografia que não reproduzisse estruturas de dominação masculina. E acho que tivemos mesmo um debate fantástico sobre agência, empoderamento, poder, sexualidade e gênero.
Mas enquanto eu via aqueles corpos todos pelados e mandando ver, eu não conseguia deixar de pensar que em alguns dias a direção iria me dar uma bronca, depois de ter sido procurada por algum pai ou mãe chocados com a ementa dos cursos na universidade. Não aconteceu nada, claro. Eu subestimava a beleza que é uma universidade pública livre e contestadora. Pouco tempo passou desde então, mas o mundo mudou bastante, ficou mais histérico e paranóico. E eu fico pensando até quando ainda vai ser possível ter aulas assim.
Uma das coisas mais bacanas que aconteceu foi que, daquele momento de estudante em Belém, durante uma RBA (Reunião Brasileira de Antropologia), já doutor, mas ainda desempregado, para cá, eu virei, justamente, professor na universidade que me formou (o hiato mais ou menos coincidiu com um período estranho, límbico, de não-lugar, quando você já se doutorou, não é mais estudante, mas também não passou em nenhum concurso... momento que as pessoas acabam preenchendo cada vez mais com bicos, pós-doutorados e muita angústia sobre o que fazer da vida). Professor, agora, contratado de fato, mas por quatro anos, naquele esquema emocionante de posdoc.
E já tenho várias histórias pra contar sobre essa aventura que é dar aula (e lá se vão quase sete anos desde que comecei a dar aula, cinco desses realmente pra valer - uma diferente da outra, completamente imprevisíveis). Mas ontem lembrei, dando risada, de um dia em específico. Creio que era 2013, ou então 2012, e eu dava uma disciplina na graduação em Ciências Sociais. Talvez Antropologia III, ou Antropologia IV, obrigatórias. Turma lotada, sempre rolam seminários bacanas por parte dos alunos (gosto de deixar como atividade opcional, não é todo mundo que gosta de dar seminário - mas quando é bacana, é muito bacana!).
Estávamos discutindo um livro da Maria Elvira, Nas Redes do Sexo, que é sobre o mercado pornográfico brasileiro (livrão, aliás). Eu sempre gostei de dar liberdade para os alunos prepararem os seminários - a criatividade é geralmente grande e sempre veem boas surpresas. Bem, no seminário anterior, que era sobre Tristes Trópicos, o grupo tinha passado um video com uma entrevista do Lévi-Strauss falando sobre o Brasil, e foi super legal (acho que foi nesse ano também que um grupo passou um video do Antonio Cândido falando sobre o caipira, bem como umas fotos de quadros do Almeida Júnior - o seminário, claro, era do lindo Parceiros do Rio Bonito). Pois bem, o grupo, talvez um pouco provocativamente, pra ver até onde ia a boa vontade do professor, resolveu passar em sala um video pornô feminista. A ideia era discutir a possibilidade de pornografia que não reproduzisse estruturas de dominação masculina. E acho que tivemos mesmo um debate fantástico sobre agência, empoderamento, poder, sexualidade e gênero.
Mas enquanto eu via aqueles corpos todos pelados e mandando ver, eu não conseguia deixar de pensar que em alguns dias a direção iria me dar uma bronca, depois de ter sido procurada por algum pai ou mãe chocados com a ementa dos cursos na universidade. Não aconteceu nada, claro. Eu subestimava a beleza que é uma universidade pública livre e contestadora. Pouco tempo passou desde então, mas o mundo mudou bastante, ficou mais histérico e paranóico. E eu fico pensando até quando ainda vai ser possível ter aulas assim.
quinta-feira, fevereiro 11, 2016
Rapidinhas mais uma vez
Pequeno momento enxaqueca:
Me irritam os intelectuais poetas de facebook que fazem haikai de aforismos pseudo-cultos. Haja paciência...
Pequeno momento deslumbre:
Hoje peguei um Agatha Christie (O assassinato no campo de golfe) que alguém deixou pra doar, junto com outros livros, no prédio da pós. Vou ler a história no que me resta de férias e depois devolver ao mundo, para outras leituras por aí. Que legal seria uma biblioteca libertária e anônima se essa onda pegasse...
Me irritam os intelectuais poetas de facebook que fazem haikai de aforismos pseudo-cultos. Haja paciência...
Pequeno momento deslumbre:
Hoje peguei um Agatha Christie (O assassinato no campo de golfe) que alguém deixou pra doar, junto com outros livros, no prédio da pós. Vou ler a história no que me resta de férias e depois devolver ao mundo, para outras leituras por aí. Que legal seria uma biblioteca libertária e anônima se essa onda pegasse...
segunda-feira, fevereiro 01, 2016
A burocracia do eterno retorno e a kafkanidade das soluções insolúveis
Estou suspeitando que a placa do meu carro foi clonada. Na verdade, eu só descobri que isso era possível esses dias (ingenuidade minha, já que há séculos nos especializamos em copiar as coisas, e hoje em dia pirateiam até água mineral).
Há pouco mais de uma semana eu tinha recebido uma multa, em um lugar que nunca vou dirigindo, "mas ok, de repente eu esqueci que fui lá; nem é tão longe de casa". O fato da autuação chegar só muito tempo depois da infração contribui para a dúvida. Mas então chegou uma outra multa, como se estivesse em Sorocaba - lugar em que não vou há uns 10 anos (a última vez foi pra ver um show dos Muzzarelas, num bar tão decrépito que o teto tinha caído em um ponto, dando pra gente ver o céu, que estava estrelado nesse dia... mas o show foi legal).
Então fui procurar como recorrer a multas em locais em que não estivemos e vi que são até bem comuns, as clonagens de carros - o nome certo é "dublê", como me informou uma simpática-mas-impossibilitada-de-me-ajudar moça no Detran no dia seguinte.
Angustiado, acordei cedinho, em pleno sábado, e fui no Poupa-tempo do centro. 7 da manhã. A cidade vazia, mas já bastante gente pegando fila na repartição. Situação realmente dantesca.
Moça no guichê, com sono, preocupada com a avaliação do serviço que iria receber depois do atendimento (você dá uma nota de 0 a 5 ao final - cinco é uma tecla verde sorrindo; zero, uma vermelha e triste):
____ Sinto muito, não há o que fazer aqui. O senhor tem que ir até o outro Poupa-Tempo, no shopping tal, onde tem um Detran também. Pode dar uma nota para o atendimento?
Pois é, aqui existe um shopping, já perto de pegar o caminho pra São Paulo, que tem um Poupa-Tempo, bem como um Detran. E uma polícia federal, aliás, onde expedem até passaportes. Acho isso um tanto quanto bizarro... meio como esses condomínios que estão surgindo, com padaria e supermercado dentro - micro urbes dentro das cidades. Você compra meias na loja de departamento, vê um filme que concorre ao Oscar, come um pão de queijo na praça de alimentação e aproveita e renova seu RG descascando.
Toca ir ao tal shopping, na puta-que-o-pariu-onde-Judas-perdeu-as-botas. Bom, na verdade o caminho, apesar de ser até bem longinho, foi rápido - a cidade ainda estava preguiçosa.
Shopping às escuras, mas Poupa-Tempo já bem movimentado também. Lá, o moço da parte do trânsito e veículos, já suficientemente alerta às 8 da manhã para cravar sorrindo com vitalidade e pronto agouro (não sem uma dose de crueldade, ou ao menos falta de sensibilidade):
____ Ih, é bem comum clonarem carros. Você pode até tentar pedir pra trocar de placa, mas o pessoal fica tão desesperado recebendo multa que prefere vender mesmo.
Os ombros de quem ainda está pagando o carro caem 20 metros em direção ao chão.
____ Mas o carro não tem um ano ainda... e isso não é passar o problema pra outra pessoa?
Sorriso mais simpático e agora também bastante triste, provavelmente pensando "assim é a vida, não sabia?"...
____Pois é... Não tem solução, não. Melhor ir no Detran lá em cima - apontou o dedo pro teto - e ver melhor isso aí.
Toca ir pro Detran, onde realmente daria pra recorrer de alguma coisa, dois andares acima (não sem antes tomar um expresso num quiosque de lanches lotado - pelo menos para isso serve estar num shopping - para afogar a vontade de largar o carro ali mesmo e nunca mais dirigir). Lá, a mencionada moça simpática-mas-de-mãos-atadas me disse, com um solidário desânimo, que eu podia recorrer às multas, mas que seria difícil ganhar.
____ Se é melhor pagar? A gente não pode dar instrução nesses casos, senhor. Mas se eu fosse o senhor eu pagava, por via das dúvidas. Se ganhar o recurso pode pedir restituição... (dando a entender que eu teria mais problemas se resolvesse exercer meu direito de não pagar pelo que eu não fiz) Mas aqui só dá pra recorrer da multa recebida em Campinas. A de Sorocaba tem que ir lá ou mandar por correio (mas pra multar o sistema intermunicipal integrado funciona muito bem, né?).
Uma calma sinistra, própria dos condenados, abateu-se sobre a minha pessoa. "Mas que porra de piada é essa?" - pensei, mas não falei. De que serviria? Ao invés, murmurei alguma praga contra ninguém e contra todos.
____ Mas o que eu posso fazer então?
O segundo sorriso triste e simpático do dia:
____ Tem que esperar chegar mais uma multa, pelo menos, para poder entrar com algum processo na delegacia.
A calma sinistra definitivamente virou resignação. O que foi bom, acho - sobretudo em épocas de gastrite.
Quando já convencido de que devia voltar pra cama e encerrar o dia que mal tinha começado, a moça tentou fazer o que eu apenas posso acreditar que foi uma tentativa de me animar, já que eu tive a impressão de que ela estava verdadeiramente compadecida de mim:
____ Mas o senhor até que tem sorte! Geralmente, em caso de carro dublê, chegam várias multas por semana!
Há pouco mais de uma semana eu tinha recebido uma multa, em um lugar que nunca vou dirigindo, "mas ok, de repente eu esqueci que fui lá; nem é tão longe de casa". O fato da autuação chegar só muito tempo depois da infração contribui para a dúvida. Mas então chegou uma outra multa, como se estivesse em Sorocaba - lugar em que não vou há uns 10 anos (a última vez foi pra ver um show dos Muzzarelas, num bar tão decrépito que o teto tinha caído em um ponto, dando pra gente ver o céu, que estava estrelado nesse dia... mas o show foi legal).
Então fui procurar como recorrer a multas em locais em que não estivemos e vi que são até bem comuns, as clonagens de carros - o nome certo é "dublê", como me informou uma simpática-mas-impossibilitada-de-me-ajudar moça no Detran no dia seguinte.
Angustiado, acordei cedinho, em pleno sábado, e fui no Poupa-tempo do centro. 7 da manhã. A cidade vazia, mas já bastante gente pegando fila na repartição. Situação realmente dantesca.
Moça no guichê, com sono, preocupada com a avaliação do serviço que iria receber depois do atendimento (você dá uma nota de 0 a 5 ao final - cinco é uma tecla verde sorrindo; zero, uma vermelha e triste):
____ Sinto muito, não há o que fazer aqui. O senhor tem que ir até o outro Poupa-Tempo, no shopping tal, onde tem um Detran também. Pode dar uma nota para o atendimento?
Pois é, aqui existe um shopping, já perto de pegar o caminho pra São Paulo, que tem um Poupa-Tempo, bem como um Detran. E uma polícia federal, aliás, onde expedem até passaportes. Acho isso um tanto quanto bizarro... meio como esses condomínios que estão surgindo, com padaria e supermercado dentro - micro urbes dentro das cidades. Você compra meias na loja de departamento, vê um filme que concorre ao Oscar, come um pão de queijo na praça de alimentação e aproveita e renova seu RG descascando.
Toca ir ao tal shopping, na puta-que-o-pariu-onde-Judas-perdeu-as-botas. Bom, na verdade o caminho, apesar de ser até bem longinho, foi rápido - a cidade ainda estava preguiçosa.
Shopping às escuras, mas Poupa-Tempo já bem movimentado também. Lá, o moço da parte do trânsito e veículos, já suficientemente alerta às 8 da manhã para cravar sorrindo com vitalidade e pronto agouro (não sem uma dose de crueldade, ou ao menos falta de sensibilidade):
____ Ih, é bem comum clonarem carros. Você pode até tentar pedir pra trocar de placa, mas o pessoal fica tão desesperado recebendo multa que prefere vender mesmo.
Os ombros de quem ainda está pagando o carro caem 20 metros em direção ao chão.
____ Mas o carro não tem um ano ainda... e isso não é passar o problema pra outra pessoa?
Sorriso mais simpático e agora também bastante triste, provavelmente pensando "assim é a vida, não sabia?"...
____Pois é... Não tem solução, não. Melhor ir no Detran lá em cima - apontou o dedo pro teto - e ver melhor isso aí.
Toca ir pro Detran, onde realmente daria pra recorrer de alguma coisa, dois andares acima (não sem antes tomar um expresso num quiosque de lanches lotado - pelo menos para isso serve estar num shopping - para afogar a vontade de largar o carro ali mesmo e nunca mais dirigir). Lá, a mencionada moça simpática-mas-de-mãos-atadas me disse, com um solidário desânimo, que eu podia recorrer às multas, mas que seria difícil ganhar.
____ Se é melhor pagar? A gente não pode dar instrução nesses casos, senhor. Mas se eu fosse o senhor eu pagava, por via das dúvidas. Se ganhar o recurso pode pedir restituição... (dando a entender que eu teria mais problemas se resolvesse exercer meu direito de não pagar pelo que eu não fiz) Mas aqui só dá pra recorrer da multa recebida em Campinas. A de Sorocaba tem que ir lá ou mandar por correio (mas pra multar o sistema intermunicipal integrado funciona muito bem, né?).
Uma calma sinistra, própria dos condenados, abateu-se sobre a minha pessoa. "Mas que porra de piada é essa?" - pensei, mas não falei. De que serviria? Ao invés, murmurei alguma praga contra ninguém e contra todos.
____ Mas o que eu posso fazer então?
O segundo sorriso triste e simpático do dia:
____ Tem que esperar chegar mais uma multa, pelo menos, para poder entrar com algum processo na delegacia.
A calma sinistra definitivamente virou resignação. O que foi bom, acho - sobretudo em épocas de gastrite.
Quando já convencido de que devia voltar pra cama e encerrar o dia que mal tinha começado, a moça tentou fazer o que eu apenas posso acreditar que foi uma tentativa de me animar, já que eu tive a impressão de que ela estava verdadeiramente compadecida de mim:
____ Mas o senhor até que tem sorte! Geralmente, em caso de carro dublê, chegam várias multas por semana!
terça-feira, janeiro 19, 2016
Amores eternos
Naqueles planejamentos do que ser quando crescer eu sempre soube que não conseguiria ser veterinário. Como disse no post anterior, não me dou bem com sofrimento dos bichos. Passo realmente mal e sofro junto.
Pois então, hoje fiquei sabendo que o Moustache, o filho da primeira ninhada da Judy, a gatinha que minha amiga Pati deixou comigo quando se mudou pra Alemanha, há tantos anos atrás (quando a Judy veio pra casa, veio kinder ovo, com surpresinha dentro já), está muito mal. Fui no veterinário onde ele está internado, visitar e fazer um pouco de carinho. Ele tava tão fraquinho... tão fraquinho que não dava nem pra arriscar e fazer os exames pra ter certeza do que ele tem. Eu fazia carinho e ele miava fraquinho, engasgado, começando um ronrom doído, quase imperceptível, até se cansar e ficar de novo um pouco quietinho. Logo ele, que demonstrava toda sua alegria parecendo um motorzinho potente sempre que me via. Consegui fazer ele comer uns 3 pedacinhos de carne, dando na boca dele, com ele deitadinho... e me segurando pra não chorar de soluçar ali e xingar o universo tão injusto.
O Moustache sempre foi o gato mais bonzinho, que sofria bullying de todo mundo. Patadas do irmão... até mesmo da mãe... assédio da cadelinha da casa... e sempre suportando tudo e vindo se refugiar no meu colo. Esfregando o nariz na minha barriga... Há uma pureza cruel e bonita na alegria genuína nessa simplicidade.
Há uma coisa muito poderosa no amor incondicional de um bichinho. Eles confiam inteiramente na gente e não têm nenhum pudor de demonstrar, constantente, sua gratidão e esse sentimento. No olhar, apaixonado, entregue, completamente honesto e sincero. E, nisso, aos que sabem apreciar, viram parte da família. Mais do que isso, na verdade. Essa história de que gato é egoísta é besteira. Nunca tive um gato que não tenha adorado se aninhar num colo e brincar de pegar.
Mas esse amor me dói profundamente, na alma, porque os bichos teimam em não ser eternos. E eu tenho problemas em perder meus amores. Tenho um egoísmo irrecuperável. Mas é porque acho que, apesar de nos darem muito mais do que damos a eles, mostrando o quanto são mais nobres do que nós, eu não consigo deixar de me sentir superprotetor, achando que são mais frágeis do que são. É que eles vivem mais intensamente - mas viver sete vezes mais rápido nos faz ficar desamparados, nós que somos mais lentos e demoramos tanto para amar.
Então espero o impossível da vida sem dor. Até que esta se refaça, invariavelmente, em saudades e depois em novos amores. Pois é assim que quebramos as promessas de não mais sofrer junto - "nunca mais terei um bichinho". Mas aquele amor incondicional, esse nunca é esquecido. Morro um pouco, junto, toda vez, até quando tenho de onde tirar, um pouco menor cada vez. Mas nunca arrependido.
Pois então, hoje fiquei sabendo que o Moustache, o filho da primeira ninhada da Judy, a gatinha que minha amiga Pati deixou comigo quando se mudou pra Alemanha, há tantos anos atrás (quando a Judy veio pra casa, veio kinder ovo, com surpresinha dentro já), está muito mal. Fui no veterinário onde ele está internado, visitar e fazer um pouco de carinho. Ele tava tão fraquinho... tão fraquinho que não dava nem pra arriscar e fazer os exames pra ter certeza do que ele tem. Eu fazia carinho e ele miava fraquinho, engasgado, começando um ronrom doído, quase imperceptível, até se cansar e ficar de novo um pouco quietinho. Logo ele, que demonstrava toda sua alegria parecendo um motorzinho potente sempre que me via. Consegui fazer ele comer uns 3 pedacinhos de carne, dando na boca dele, com ele deitadinho... e me segurando pra não chorar de soluçar ali e xingar o universo tão injusto.
O Moustache sempre foi o gato mais bonzinho, que sofria bullying de todo mundo. Patadas do irmão... até mesmo da mãe... assédio da cadelinha da casa... e sempre suportando tudo e vindo se refugiar no meu colo. Esfregando o nariz na minha barriga... Há uma pureza cruel e bonita na alegria genuína nessa simplicidade.
Há uma coisa muito poderosa no amor incondicional de um bichinho. Eles confiam inteiramente na gente e não têm nenhum pudor de demonstrar, constantente, sua gratidão e esse sentimento. No olhar, apaixonado, entregue, completamente honesto e sincero. E, nisso, aos que sabem apreciar, viram parte da família. Mais do que isso, na verdade. Essa história de que gato é egoísta é besteira. Nunca tive um gato que não tenha adorado se aninhar num colo e brincar de pegar.
Mas esse amor me dói profundamente, na alma, porque os bichos teimam em não ser eternos. E eu tenho problemas em perder meus amores. Tenho um egoísmo irrecuperável. Mas é porque acho que, apesar de nos darem muito mais do que damos a eles, mostrando o quanto são mais nobres do que nós, eu não consigo deixar de me sentir superprotetor, achando que são mais frágeis do que são. É que eles vivem mais intensamente - mas viver sete vezes mais rápido nos faz ficar desamparados, nós que somos mais lentos e demoramos tanto para amar.
Então espero o impossível da vida sem dor. Até que esta se refaça, invariavelmente, em saudades e depois em novos amores. Pois é assim que quebramos as promessas de não mais sofrer junto - "nunca mais terei um bichinho". Mas aquele amor incondicional, esse nunca é esquecido. Morro um pouco, junto, toda vez, até quando tenho de onde tirar, um pouco menor cada vez. Mas nunca arrependido.
segunda-feira, janeiro 18, 2016
Pensamentos avulsos
Quantas vidas cabem numa pessoa com convicção suficiente pra
não se satisfazer ou não ter convicção suficiente pra teimar? Pensei nisso
hoje, lembrando de lembranças de um outro eu com tantos sonhos tão diferentes. Afinal,
quando é que esses sonhos deixam de definir e viram memórias? E como saber que
essas memórias de fato não são coloridas por sonhos novos?
Hoje fui pagar o IPVA do carro, mas tinha esquecido que era
possível quitar todas as taxas juntas. Paguei primeiro o IPVA e depois, quando
fui ver o licenciamento, descobri que não tinha como pagar separado. Só pagando
esse combo de taxa – com o IPVA incluído de novo. Toca pegar senha pra ser
atendido por bancário humano. Desvio da loira grossa que fica na mesa da frente,
distribuindo sua cota de miséria cotidiana – será que é castigo atender o
público? Quase sou atingido por um espirro tão grande, de um grande moço
novinho com cara de entediado que acompanhava a mãe no banco, que pensei que os
seguranças fossem sacar suas armas, achando tratar-se de um assalto (tenho
pavor de segurança de banco e mais ainda quando chega um carro forte). Dez e
dez da manhã, já existe uma fila considerável. Espera, espera. A bancária
humana, depois de ouvir meus lamentos, diz que não é possível pagar mais
separadamente. “Agora tem que esperar dois dias e tentar de novo, quando o
sistema computar o pagamento já feito”. “Dois dias?”. “Sim, dizem que é online,
mas não é coisa nenhuma”. Volto pensando nas vantagens da tecnologia a serviço
da burocracia. É por essas que eu continuo não achando que estou perdendo muita
coisa sendo um desfavorecido computacional. Não quando tudo ainda é decidido
por alguém sem muita boa vontade.
Fiquei uma semana na praia. Em Itamambuca, litoral norte de
São Paulo. Dias tranquilos, muita chuva, muito sono, então consegui descansar –
não sem brincar com o bebê-sorriso, Theo, e cozinhar bastante com a Luiza, que
se mostrou uma cozinheira de mão cheia. Nas tardes preguiçosas, nos intervalos
de trabalho de um textinho que estou escrevendo, li Flush, da Virginia Woolf,
presente da querida Karina – e gostei muito! Não sem algum sofrimento (tenho
problemas com os problemas dos animais), mas completamente fascinado pelo texto
e pela perspicácia da perspectiva canina sobre o mundo. A passagem sobre a
experiência constituída pelos cheiros é fantástica e deliciosa de ler! E pensar
que foi um livro escrito despretensiosamente, pra descansar de outros projetos...
Tinha levado um livro do Schneider, mas a biblioteca da casa que alugamos era
muito interessante, então resolvi investir em outra ficção. Achei lá um romance
da Agatha Christie, que eu sempre gostei de ler quando mais novo: Morte na rua
Hickory. Foi interessante ler dois best-sellers de duas inglesas mais ou menos
contemporâneas, num intervalo curto de tempo. A prosa de Christie é mesmo muito
boa e fácil de ler. E os mistérios ainda entretêm – eu me surpreendi com a
resolução do crime, pela dedução de Poirot (interessante que este é um dos
casos em que ele recebe bastante ajuda da polícia – ele está mais velho e já dá
sinais de que não é infalível). Mas é um romance que envelheceu. Diferente do
livro de Woolf, que dá pra ler e reler - e imagino que continue assim por muito
tempo.
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