sexta-feira, novembro 04, 2016

Tchau, Nina

Ela chegou na nossa vida 15 anos atrás.

Eu e a Dani, ainda namorandívoros que éramos, estávamos nos preparando para um grande passo em nossas vidas: morar juntos. Compramos o que nosso pouco dinheirinho permitia, ganhamos outras coisas dos amigos e da família, e montamos uma casinha - a mesma onde estamos até hoje.

E resolvemos que seríamos uma família de mais de dois. Fomos na casa de uma criadora de gatos e escolhemos um lindo gatinho marrom, de olhos grandes e amendoados, de nome Lion - que logo mudamos para um que achávamos que combinava com ele: Puskas, em homenagem ao jogador húngaro. Aí depois que estava grandinho o suficiente fomos pegá-lo para levar para casa. Mas ali, meio ignorada pelos outros pretendentes de humanos cuidadores, estava uma gatinha mirradinha, de língua pra fora, com dois dentinhos que não cabiam na boca (de vez em quando a chamávamos de "gatinha javali"). Não precisou de muito encorajamento da dona para que nosso coração derretesse e resolvêssemos abrir mais uma vaga na família e levá-la junto. Já tivemos uma outra Nina antes, que ficou com uma amiga nossa, mas resolvemos repetir o nome, que combinava tanto com aquela gata pequenina e totalmente branca. Ao longo do tempo ela ganharia outros apelidos: Ninalina, Gata Branca, Sagatiba, Sagatibinha Branquinha do Natal... mas para ela, Niiinaaaa - aquele som que ouvia e que sabia que estávamos chamando e que significava que poderia produzir um pouquinho de amor por dia.

E lá se foram 15 anos de algo que me fez descobrir o que era esse "amor incondicional" de que ouvia falar. Aquele olhar apaixonado, de quando subia no meu peito, deitava o queixo e se colocava a ronronar sem parar; sempre olhando nos meus olhos. Sempre que estava sentado na cadeira do escritório, ou no sofá da sala, ela vinha e pulava no colo. Se não vinha e pulava, eu chamava "Niiinaaaa", e zás, ela vinha correndo!

15 anos de muito companheirismo. Aquelas horas na frente do computador, escrevendo tese, lá vinha ela, chamando a atenção, sentar no teclado e me falar que havia outras coisas importantes na vida, para eu não me esquecer disso. Lição que acho que nunca aprendi de fato nesses anos todos. Talvez agora, quem sabe. Uma última coisa que a Nina fez por mim. A real medida das coisas, sabe?

Pois as últimas semanas foram as mais difíceis da minha vida. Acho que nunca sofri tanto. Vendo aquela gatinha intrépida e acrobata ficar cada vez mais magrinha, mais fraquinha. Não sabia que tinha tantas lágrimas, ou que o coração podia realmente se partir. No final ela deixou de andar, tínhamos que dar água e comida na boca, dar um banhinho porque ela não conseguia mais ir no banheiro sozinha. E mesmo assim ela não sofreu. Só parecia que estava parando de funcionar. Mas até hoje de manhã ainda ronronava, feliz com pouca coisa. Um cafuné, uma gotinha de água, uma conversa e um pouco de atenção. Ela não sofreu, mas eu e a Dani ficamos com nossos corações pequenos, apertados. O Puskas sabia que algo acontecia, respeitava e dava distância.

Foi a coisa mais dura que já fiz, vê-la partir e dar o último suspirinho, quase imperceptível, deitadinha na cama conosco. Já perdi outros bichinhos, mas nunca assim. E que injustiça, devem pensar "que drama, que maluco, tanta desgraça no mundo, tanta gente precisando de ajuda e faz esse chororô todo por uma gata". Só que eu não me arrependo de ter dado a maior parte de mim nessas últimas semanas. Vivi o resto no modo básico, aquele suficiente. Deixei os prazos estourarem. Os preciosos e vitais e-mails sem responder. A incontornável arena política das redes sociais esbravejando sozinha. Pelo menos por um tempo, o tempo dela.

O caso é que nesses últimos dias eu me dei conta de algumas coisas. Talvez a principal é que o mundo é pequeno. E é essa pequenez que importa. Uma vidinha felina, que talvez não importe muito no grande esquema das coisas. Pouca gente a conheceu. Ela não inventou nenhuma vacina, ou liderou uma revolução. Mas era a criatura mais carinhosa e doce que podia existir. E, ainda que pequena, levinha e frágil, também corajosa e destemida. Por um mês ela ficou ainda conosco, nos dando chance de nos despedir aos poucos. E sua passagem por aqui, um cuidado mútuo - ela da gente, nós dela - valeu tudo. E digo, tudo. Colocamos as coisas em perspectiva. Nos salvamos - e, fazendo esse pequeno ato particular, todo o universo ficou mais bonito. E demos e ganhamos sentido. Aquela coisa paradoxalmente estranha, que só dá para entender nessas horas. Quando tudo é salvo nos pequenos amores, não importa qual seja. Afinal, o mundo é pequeno, você sabia? Nos resta entender que não é preciso muito de nós para povoá-lo, e que é um desperdício nos esgarçarmos muito. Cultive seus pequenos-grandes amores. Eles são raros e vale a pena cuidar. Mesmo que a saudade, depois, doa.

Lá foi sentar em outros teclados de computador. Lá foi caçar bichinhos nos sonhos.

Um comentário:

Morgana das Brumas disse...

Que lindo Chris, fazia tempo que não vinha pelos lados do seu blog e que linda história, eu mesma este ano estou tentando voltar a escrever por esses lados, talvez como diz você longe das arenas das redes sociais...
Quando saí de Campinas trouxe um mestiço labrador o Negão e o Miguilim, Negão não suportou muito a adaptação e adoeceu picado pelo mosquito palha, precisei sacrificá-lo, nunca imaginei que pudesse doer tanto, pois ele foi meu companheiro durante o doutorado, de sentar junto, de chorar comigo nos dias difíceis, com a cabeça sobre os meus pés...sim o universo fica mais bonito quando somos capazes de amar e os bichos nos ajudam a amar incondicionalmente, foi isso que aprendi com ele. Passei uns dois anos ainda sonhando com ele, até que um dia, consegui em sonho chegar perto dele de novo e abraço-lo, os meus dedos deslizavam sobre o pelo negro dele e lhe dei um grande abraço, ele estava feliz, penso eu que no céu dos cachorros...depois disso nunca mais sonhei com ele, mas ele ficou em mim... um abraço enorme e como é bom ler algo tão sensível!