segunda-feira, fevereiro 01, 2016

A burocracia do eterno retorno e a kafkanidade das soluções insolúveis

Estou suspeitando que a placa do meu carro foi clonada. Na verdade, eu só descobri que isso era possível esses dias (ingenuidade minha, já que há séculos nos especializamos em copiar as coisas, e hoje em dia pirateiam até água mineral).

Há pouco mais de uma semana eu tinha recebido uma multa, em um lugar que nunca vou dirigindo, "mas ok, de repente eu esqueci que fui lá; nem é tão longe de casa". O fato da autuação chegar só muito tempo depois da infração contribui para a dúvida. Mas então chegou uma outra multa, como se estivesse em Sorocaba - lugar em que não vou há uns 10 anos (a última vez foi pra ver um show dos Muzzarelas, num bar tão decrépito que o teto tinha caído em um ponto, dando pra gente ver o céu, que estava estrelado nesse dia... mas o show foi legal).

Então fui procurar como recorrer a multas em locais em que não estivemos e vi que são até bem comuns, as clonagens de carros - o nome certo é "dublê", como me informou uma simpática-mas-impossibilitada-de-me-ajudar moça no Detran no dia seguinte.

Angustiado, acordei cedinho, em pleno sábado, e fui no Poupa-tempo do centro. 7 da manhã. A cidade vazia, mas já bastante gente pegando fila na repartição. Situação realmente dantesca.

Moça no guichê, com sono, preocupada com a avaliação do serviço que iria receber depois do atendimento (você dá uma nota de 0 a 5 ao final - cinco é uma tecla verde sorrindo; zero, uma vermelha e triste):

____ Sinto muito, não há o que fazer aqui. O senhor tem que ir até o outro Poupa-Tempo, no shopping tal, onde tem um Detran também. Pode dar uma nota para o atendimento?

Pois é, aqui existe um shopping, já perto de pegar o caminho pra São Paulo, que tem um Poupa-Tempo, bem como um Detran. E uma polícia federal, aliás, onde expedem até passaportes. Acho isso um tanto quanto bizarro... meio como esses condomínios que estão surgindo, com padaria e supermercado dentro - micro urbes dentro das cidades. Você compra meias na loja de departamento, vê um filme que concorre ao Oscar, come um pão de queijo na praça de alimentação e aproveita e renova seu RG descascando.

Toca ir ao tal shopping, na puta-que-o-pariu-onde-Judas-perdeu-as-botas. Bom, na verdade o caminho, apesar de ser até bem longinho, foi rápido - a cidade ainda estava preguiçosa.

Shopping às escuras, mas Poupa-Tempo já bem movimentado também. Lá, o moço da parte do trânsito e veículos, já suficientemente alerta às 8 da manhã para cravar sorrindo com vitalidade e pronto agouro (não sem uma dose de crueldade, ou ao menos falta de sensibilidade):

____ Ih, é bem comum clonarem carros. Você pode até tentar pedir pra trocar de placa, mas o pessoal fica tão desesperado recebendo multa que prefere vender mesmo.

Os ombros de quem ainda está pagando o carro caem 20 metros em direção ao chão.

____ Mas o carro não tem um ano ainda... e isso não é passar o problema pra outra pessoa?

Sorriso mais simpático e agora também bastante triste, provavelmente pensando "assim é a vida, não sabia?"...

____Pois é... Não tem solução, não. Melhor ir no Detran lá em cima - apontou o dedo pro teto - e ver melhor isso aí.

Toca ir pro Detran, onde realmente daria pra recorrer de alguma coisa, dois andares acima (não sem antes tomar um expresso num quiosque de lanches lotado - pelo menos para isso serve estar num shopping - para afogar a vontade de largar o carro ali mesmo e nunca mais dirigir). Lá, a mencionada moça simpática-mas-de-mãos-atadas me disse, com um solidário desânimo, que eu podia recorrer às multas, mas que seria difícil ganhar.

____ Se é melhor pagar? A gente não pode dar instrução nesses casos, senhor. Mas se eu fosse o senhor eu pagava, por via das dúvidas. Se ganhar o recurso pode pedir restituição... (dando a entender que eu teria mais problemas se resolvesse exercer meu direito de não pagar pelo que eu não fiz) Mas aqui só dá pra recorrer da multa recebida em Campinas. A de Sorocaba tem que ir lá ou mandar por correio (mas pra multar o sistema intermunicipal integrado funciona muito bem, né?).

Uma calma sinistra, própria dos condenados, abateu-se sobre a minha pessoa. "Mas que porra de piada é essa?" - pensei, mas não falei. De que serviria? Ao invés, murmurei alguma praga contra ninguém e contra todos.

____ Mas o que eu posso fazer então?

O segundo sorriso triste e simpático do dia:

____ Tem que esperar chegar mais uma multa, pelo menos, para poder entrar com algum processo na delegacia.

A calma sinistra definitivamente virou resignação. O que foi bom, acho - sobretudo em épocas de gastrite.

Quando já convencido de que devia voltar pra cama e encerrar o dia que mal tinha começado, a moça tentou fazer o que eu apenas posso acreditar que foi uma tentativa de me animar, já que eu tive a impressão de que ela estava verdadeiramente compadecida de mim:

____ Mas o senhor até que tem sorte! Geralmente, em caso de carro dublê, chegam várias multas por semana!

Nenhum comentário: