domingo, junho 12, 2016

Passeando fora do tempo

Nas rebarbas do congresso em Coimbra, para onde fui na semana passada, passei dois dias em Lisboa, relembrando como gosto daquela cidade.

Na primeira vez que fui, lá pelos idos de 1997, não tinha gostado, na verdade. Era véspera da Expo 98 - aquela coisa esquisita que fizeram com Lisboa - e tudo me parecia um grande canteiro de obras. De bom, mesmo, eu só lembro que se podia fumar em qualquer lugar. Nem queria acender um cigarro no cinema, mas já que podia...

Sobre a Expo, aliás, fico pensando, dá pra se falar muito. É o tipo de remodelagem radical que se faz em uma urbe, que aparentemente deveria revitalizá-la, mas que no fundo é uma forma de algumas pessoas ganharem muito dinheiro e exacerbar as desigualdades urbanas de uma maneira brutal. Sempre é o mesmo discurso, normalmente em Olimpíadas ou grandes eventos: aproveita-se o grande fluxo de capital e de vontade política e investe-se em infra-estrutura. Bem, já vimos que na prática a coisa é bem menos bonita. Descontando-se os superfaturamentos (sempre rondando os grandes empreendimentos), o fato é que é uma oportunidade de ouro pra especulação imobiliária, para a gentrificação progressiva que separa os cada vez mais endinheirados (e ciosos de suas vizinhanças e fronteiras) e aqueles empurrados para as periferias reais e simbólicas da vida. Há algo de muito violento no tipo de rápida transformação citadina que me deixa horrorizado.

Demoraria 15 anos para voltar a Lisboa, para um congresso, justamente. E a mudança foi impressionante. Havia toda uma parte da cidade que antes não existia! Para um lugar tão antigo, onde as construções são as mesmas por décadas ou séculos, isso é ainda mais estranho.

E agora novamente, 5 anos depois dessa penúltima visita, voltei a perambular por Lisboa. Mas evitei toda aquela região do Parque das Nações, insípida, planejada, cheia de shoppings e pavilhões que lembram - certamente não manifestadamente, mas provavelmente não à toa - a megalomania colonial salazariana. Algo com que os portugueses certamente não querem mais fazer associações, mas que está sempre presente, nos pequenos e nos grandes detalhes, incrustado na arquitetura e na paisagem.

Lisboa é uma cidade muitíssimo agradável para andar, a esmo. Para passear, no sentido promenade mesmo. Quando a tarde cai e as luzes (que nunca parecem iluminar de fato) começam a acender eu tenho a impressão de estar em outra época. Os fantasmas que perambulavam por ali ficam mais densos, menos esvoaçantes sob o amarelado dos postes e das grandes lanternas dependuradas e espalhadas pelas ruas.

Eu fico com a impressão de estar em algum quadro pós-impressionista. Daqueles que comentam os costumes da modernidade que chega de repente e que vem substituir o que quer que seja que guardava aqueles espaços que se pode identificar como antigos, velhos mesmo - ainda que teimosos por ir por completo (de onde a tragédia das regiões ultra planejadas). Quadros que anunciam o fim do século XIX, a transição do campo para a cidade, o começo dos estilos modernos. Da vida em movimento quase maníaco de tão constante. Um quadro de Toulouse-Lautrec em alguns momentos, ao pé do castelo de São Jorge, sempre mais cheio de sombras e de recantos mais escuros, de espaços sem muita gente. Ou então um de Degas, junto às pessoas na Alfama e seus vermelhos todos, ou a agitação e boemia da Mouraria. A parte baixa e o Chiado são pintados por outras mãos. Mas talvez por sua movimentação ininterrupta não sejam tão apetitosas ao flâneur que busca essa mediunidade ambulante. Para isso é preciso, precisamente, pausar. Mesmo que rapidamente.



E dessa vez conheci o outro lado do Tejo, o sul, em Cacilhas. Com suas docas decrépitas, os pescadores noturnos, as paredes com os azulejos roídos e progressivamente roubados, não exatamente apagando seu passado, mas paradoxalmente conferindo um ar ainda mais forte, pela ausência cada vez mais presente daquilo que teria existido e que se esvai ano após ano. E de lá, em uma tasca a beira rio, tomando um vinho, comendo um arroz de Tamboril, depois bebericando uma bagaceira que desce rasgando sem queimar, ver o anoitecer me deu a chance de pensar tudo isso, de longe mas não tanto, sobre essa bonita, singular mas familiar e acolhedora cidade.



Um comentário:

Karina Kuschnir disse...

ownnn... e esse aqui! que saudades de Lisboa... que lindas imagens, Chris!! amei tudo, cada palavrinha, cada metáfora, cada lembrança dessa cidade que também amo. post #499 digno da sua própria grandeza! ♥