Tive um professor chamado Severino. Severino demonstrava as técnicas maravilhosas de redação e argumentação. Se aventurava a dar aulas de literatura quando necessário, e até mesmo exibia algumas noções de retórica para iniciantes. Afinal, estou cada vez mais convencido, o mundo não está aí. Veritati et innocentiae meae nusquam locus est (Tácito).
A máxima da inspiração e transpiração era levada a sério nas suas aulas. Mas para transpirar, ora, para transpirar, você tinha que ser bom - e inspirado.
Severino era alto. Alto em altura, mas também porque andava suave e imponente. Parecia maior. Quando você percebia, lá estava. E ia igualmente sem alarde. Cabelos cacheados castanhos e barba castanha bem cortada, mas intensa. Olhos azuis muito claros - quase água. Sempre de óculos em harmonia com o rosto. Voz tranquila, de barítono, cadência baiana mas sem sotaque. Camisas xadrez eram suas preferidas. Sapatos de mocassim.
As pessoas diziam que ele havia nascido no século retrasado (diziam "século passado", mas isso, afinal, foi no século passado...). Ele tinha outro ritmo.
De qualquer maneira, ele me ensinou a escrever de fato. Cheguei à conclusão que antes eu era apenas alfabetizado, mesmo com 16 anos.
Redação era disciplina para os sonhadores, a maioria se contentava em fazer o texto-fórmula para conseguir média. Eu me debruçava no papel (que computador que nada) em busca de um elogio, que me deixava vermelho, mas sempre com ânsia de um novo pico.
Severino amava boxe, o que causava estranhamento entre os mais desavisados. Idolatrava Cassius Clay o original, Joe Frazer e Sugar Ray Leonard. Nada da truculência de Mike Tyson. Às vezes ficava metade da aula discorrendo sobre a arte do boxe, o ringue, a dança, o embate - com as mãos e as palavras. Algo muito próximo da análise da tauromaquia de Michel Leiris - fenômeno que muitos, tal como com o boxe, não consideram uma arte e sim uma atrocidade.
Quando falava sobre boxe, Severino se empolgava. Toda a fragilidade que lhe era característica desaparecia momentaneamente.
Mas sempre ficava com a impressão de que suas palestras sobre a esgrima dos punhos eram uma batalha perdida. Ele sabia disso, mas não podia evitar. Falava de sua paixão para alunos que, quando ouviam, consideravam tudo aquilo apenas uma contradição pitoresca, uma pessoa tão doce, que ensinava os prodígios de Drumond, E agora José, e as originalidades de Bandeira, Pneumotórax, gostava, pasmem, de pancadaria! Mas vira e mexe voltava a contar sobre alguma luta memorável e a vida de algum lutador.
Me lembro que ele tinha outro ídolo: Giordano Bruno, oriundo da mesma Campania dos meus antepassados. Figura fascinante, de andanças e feitos prodigiosos, Bruno merecia admiração de Severino por tudo que fez e pela recusa da retratação, que lhe valeu a fogueira. Mas os feitos, estes são temperados com posturas. Ele sempre falava de Bruno em relação a Galileu, da mesma forma que falava de Frazer em relação a Tyson, ao me parecia. Algo como outro professor de literatura fazia com Chico de um lado e Caetano e Gil de outro. Um certo respeito pela desgraça em consequência do caminho mais difícil. Vida sofrida severina.
Não sei se Severino ainda é professor de redação. Mas sinto saudades e lhe sou grato por tudo que poderia ter sido e não foi... Porque nem sempre a potencialidade é coisa boa.
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2 comentários:
Oi Chris! Tudo bem? O mesmo Severino foi meu professor também no anglo, por apenas um ano. A ele devo também boa parte do pouco que sei das artes da pena, me ensinando de início a organizar o meu pensamento confuso e a dar ordem em minha argumentação. Com ele aprendi o que significa uma introdução e uma conclusão, e mais ou menos como fazer para chegar de uma à outra. Nesse sentido, acho que a lição que ele me ensinou que me é mais preciosa e que eu passei a utilizar sempre, estendendo-a inclusive para outros domínios do pensamento, é a famosa lição do distanciamento. Com isso ele queria dizer que depois que se escreve algo, deveríamos nos afastar do texto por algum tempo, deixando-o "esfriar", para só depois então retomá-lo com outro fôlego e perspectiva purificada. Nesse tempo foi aprendendo o quanto isso é importante em todas as áreas de nossa vida, desde as lições básicas de antropologia de reconhecimento da diferença aos momentos de crise e confusão mental. É engraçado, mas foi com ele que aprendi as primeiras lições de como viver uma vida mais saudável, procurando esfriar a cabeça em muitos momentos nos quais uma ação mais teimosa teria me levado ao fracasso. Até hoje ainda penso e lembro do Severino com saudades, pois ele foi um desses caras que a gente pode verdadeiramente chamar de Mestre.
Abração,
Marcelo
Ai cacete! Tinha escrevido um monte aqui e acabei apertando algum botão estúpido e apagou tudo...Veja os meus comentários lá no Palette, Chris...
Só uma coisa... estou louco para ir comer Sushi com vocês e o André e a Larissa. Não sei porque mas tenho a forte sensação de que vai ser um programão. Podemos ir no Daitan... Avisem quando quiserem ir... Por mim eu ia hoje mesmo....;0)
Abraços,
Marcelo
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