Todas as falas giraram em torno da falácia cientificista "do bem maior", e dos pressupostos discursivos envolvidos na questão, tratando de analisar a ética e a moral no sofrimento infligido a outros terráqueos - quais poderes estão em jogo e qual seria a possibilidade de uma posição possível quanto à questão.
Pensei comigo mesmo que não sei se há de fato a possibilidade de um argumento que me convencesse logicamente, já que mesmo a tal "regra de ouro" - não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você - me dá a impressão de ser apenas mais um posicionamento e uma defesa de uma postura, culturalmente constituídas. De qualquer maneira, sobre uma universalidade no trato com outros seres, prefiro não falar muito (mesmo porque de fato não tenho certezas quanto a isso).
Cogitei fazer uma intervenção que saísse da discussão epistemológica que estava se desenhando e que entrasse no etnográfico, mesmo que fosse uma etnografia de mim mesmo (ou seja, minha opinião). Isso no tocante às estratégias discursivas na defesa dos animais (porque, como disse, acho que uma tomada de posição é inevitável, mesmo sob a óptica das ciências "hard").
Também acredito que o discurso cientificista não pode ser dissociado da questão ético-moral. E quando o é, há uma tendência a se perder na argumentação e tomar partido por outras razões que aquelas aparentes.
Explico. Li outro dia um artigo, do antropólogo Adrian Peace (no último número da AT, que, aliás, tem dado grande ênfase na questão ecológica nos últimos números), em que ele analisou a campanha publicitária da corporação Meat and Livestock Australia, que desde 2006 tentou estimular o consumo de carne vermelha no país com um bombardeio de propagandas na tv e junto aos profissionais da saúde (escritórios de nutricionistas, por exemplo). Na verdade se tratava de um contra-ataque a um estudo publicado sobre os malefícios do consumo de carne vermelha. Além do impacto ambiental gerado pela indústria pecuária (o desmatamento para a produção de pastos e a emissão dos gases que são responsáveis pelo efeito estufa - produzidos pelos animais ruminantes, mas não pelos monogástricos - como as aves, por exemplo), o consumo de carne vermelha aumenta significativamente (essa expressão tão adorada pelos cientistas, mas que é, ao mesmo tempo, tão vaga) o risco de doenças cardíacas, diabetes e obesidade.
A corporação aussi produziu então uma maquiavélica campanha (protagonizada pelo ator Sam Neil, incorporando seu personagem do Parque dos Dinossauros - procure no YouTube, é imperdível), também baseada em argumentos científicos, que provariam os benefícios da ingestão da carne vermelha. Uma espécie de neo-evolucionismo tacanho é então invocado para associar a evolução social humana (desde a descida da árvore) com a caça de animais. E mais, do desenvolvimento do cérebro humano com a dieta carnívora. Nossos antepassados sabiam, instintivamente, que essa dieta era necessária para a sobrevivência da espécie. Então quem somos nós para lutar contra a Natureza? Indo mais além - e este é o cerne da questão levantada pelos lobistas da carne - existem uma série de substâncias, como o ferro, o zinco, a essencial vitamina B12 e o famosíssimo Ômega-3s, que são obtidas na dieta de carne vermelha.
O que tudo isso significa, para mim, é que uma queda de braço discursiva está sendo travada, e você pode lançar mão da legitimidade científica para as mais variadas posições. E, quem fica no meio se encontra perdido na escolha: "prefiro ter zinco no meu corpo, ou não ter diabetes?"
Claro, a inserção lógica da questão ético-moral e uma etnografia da indústria do abate pode levar um ou outro para uma tomada de posição. Mas este é exatamente o ponto, já que essa lógica científica nunca é neutra, e vem acompanhada de diversos valores (são eles culturais, universais? Lévi-Strauss já gastou bastante tinta com isso). Mas o que me deixa com a pulga atrás da orelha é que mesmo tais pressupostos morais podem ser desafiados (hoje mesmo um rapaz levantou a questão "ok, também não gosto de matar animais, mas se isso é necessário para o desenvolvimento de medicamentos..."). E fico com a impressão que é um diálogo de surdos, cada lado advogando o seu argumento irrefutável. E voltamos ao cientificismo, incrivelmente, para pender a balança para um lado ou para o outro: os resultados obtidos com experimentação animal, por exemplo, são baseados no pressuposto da correlação entre homem e animal (que, paradoxalmente, deveria exatamente impedir o abuso contra os animais). Mas tais resultados não podem ser simplesmente transferidos à esfera humana sem novos testes (para que então, alguém poderia perguntar, se fez experiência com os animais para começo de conversa?).
Não parecemos andar em círculos? Ou exagero no relativismo?
Me abstive de falar qualquer coisa na hora da discussão com o público, no final das contas. Porque por mais que os personagens envolvidos tentem analisar a questão racionalmente, sempre defenderão seus pontos de vista de forma bastante emocional (e muitas vezes com rispidez - para dizer o mínimo). Mas sempre que fico sabendo dos resultados científicos, descobertos por estas equipes de estudiosos que fecham-se em seu mundinho, me dá a impressão de que sou moeda de troca em um embate maluco (o licopeno do tomate previne alguns tipos de câncer, mas a sementinha provoca outros. E então, como ficamos? Fora o tomate?). Nessas horas me sinto - desculpem-me, mas uso aqui um trocadilho infeliz, ainda que irresistível - como um verdadeiro ratinho de laboratório.
De duas, uma: ou acreditamos que podemos experimentar com os animais porque partimos do pressuposto de que eles são seres completamente distintos de nós, ou acreditamos que eles são parte de nossa humanidade e então a questão da crueldade se coloca. Pessoalmente acredito que a humanidade tem grande potencialidade para o sadismo.
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