segunda-feira, janeiro 08, 2007

Memorabilia 1 - pequenas neuras

Tive um amigo cujo pai era um barato. Ele (o pai) era de família inglesa, mas morou por muito tempo na Rússia, como também em Hong Kong, trabalhando com exportação. Antes de se fixar com a família em Campinas City.
Era cultíssimo. Falava não sei quantas línguas, entendia de música clássica como nunca vi, e conversava com você sobre qualquer coisa. Por muitos anos eu frequentei o banco de trás do seu carro (sem qualquer conotação sexual aqui), indo e vindo dos colégios de que eu e o filho dele éramos alunos. Fizemos rodízio com várias crianças (e depois adolescentes) na época de escola, mas nós mesmos fomos colegas de rodízio por anos a fio.
No banco de trás, com a mochila no colo, remela nos olhos e o mau-humor dos que acordam cedo e não suportam (sim, mesmo naquela época), eu não achava o pai do meu colega tão legal. Em outras ocasiões, era um barato. O cara que nos levava em festas e depois buscava. Nos levava para o PlayCenter e nos deixava fazer o que nos desse na telha. Foi pra casa dele que eu fui, quando bati o carro em um dia que meus pais haviam saído. Conversava e ensinava muita coisa. E tinha um Monza Classic - que na década de 80 não era carro de pedreiro, mas sonho de consumo de nós garotos.
Mas no caminho da escola eu ficava com receio dele. Porque tinha certeza que ele sabia ler mentes nessas ocasiões. Impressionante como era algo que, mesmo que conscientemente eu soubesse ser uma besteira, não conseguia evitar acreditar no efeito.
Eu tentava bloquear meus pensamentos. Depois pensava "ih, que tonto. Ele não lê mentes". Depois testava: "Se o senhor estiver lendo minha mente, dê uma olhada no retrovisor". Só por precaução. Pronto, estava ferrado. Não importava o que ele fizesse, minha teoria da leitura cerebral era comprovada. Se ele por acaso olhasse, presto! E se ele não olhasse, ficava pensando que isso não significava nada, já que ele provavelmente gostaria de guardar o segredo de seu dom excêntrico.
E sempre que ele não falava e ficava calado - o que era o caso nas viagens de carro - ele adquiria um olhar escrutinador, penetrante, que poderia facilmente ser reconhecido como sintoma de alguém que está te avaliando (o que talvez estivesse de fato fazendo).
Não sei se ele ainda vive. De vez em quando eu o via dirigindo seu monza prata pelo bairro. Depois vi que trocou o carro por um kadett, também prata - a decadência da classe média estava em rumo; mas ele ainda fiel à General Motors. Fazem muitos anos que eu não o vejo. Como quando eu era criança ele já era bem mais velho (devia ter quase 70 então), e eu nunca mais tive contato com aquele meu amigo, não sei o que foi feito dele (novamente, o pai).
Talvez ele esteja lendo este post, de alguma maneira.

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