Bem, era para concluir aquele post teste que tinha feito um tempo atrás. Mas a preguiça de fim de ano bateu mais alto. Preguiça, esta, que vai virar - bem picaretamente - o tema deste post de final de ano. Mas por um bom motivo escondido: depois de meses de correria, gostaria de elogiar um pouco a preguiça.
Mas só para não deixar completamente batida a ideia do post duplo temporal, algumas palavrinhas. A ideia era falar alguma coisa sobre o novo filme do Star Wars - afinal, àquela altura do post de outubro, eu já tinha ingressos comprados (de onde a noção meio esquisita de algo tão no futuro que já estivesse certo). Estava super animado para ver, depois de anos esperando (e depois da decepção dos tais prequels) um novo filme realmente empolgante da série. E o filme foi bom mesmo. Assisti no dia da estreia. Não sem seus defeitos, achei que o diretor conseguiu lidar muito bem com a enorme expectativa e a cobrança que foi feita em cima da produção, que já tem batido todos os recordes de arrecadação. Só por lidar com isso tudo já merece uma menção de louvor. Gostei dos personagens novos e, na maior parte das vezes, dos personagens clássicos. Ficam aqui meus cumprimentos ao diretor, que é ótimo para ter ideias: contarei em futuro post sobre o livro, de sua concepção, que estou lendo.
Então por que não fazer o tal post, tal como eu tinha planejado? Por conta da preguiça, principalmente. Mas também porque senti que decepcionei o universo scifi na última banca que participei - e fiquei um pouco traumatizado com o tema. Sem mais sobre isso - apenas a título de uma rápida explicação.
E a preguiça, você pergunta?
Normalmente palavrinha com conotação negativa, estou exercitando minha preguiça neste final de ano. E sabe o que é maluco? Com dificuldade. Alguma força sinistra está me impedindo de usufrui-la como se deve.
Justo ela, que me vinha tão fácil ao longo de toda a vida...
Bem, eu tinha decidido que não iria fazer nada até começo de janeiro. E realmente tenho dormido como há tempos não dormia. Mas todo dia eu acordo com uma sensação de que estou atrasado com alguma coisa, que deveria estar trabalhando em algo. Poderia estar fazendo isso e aquilo. É muito estranho e até um pouco angustiante.
Que bizarro ritmo de trabalho foi esse que adquiri que não me deixa desligar? Bom, pelo menos o corpo tem descansado - já é alguma coisa. É um pouco assustadora a quantidade de horas que estou dormindo, mas isso é sinal de que eu realmente estava precisando. Espero que em mais uns dias eu consiga desligar também mente - mesmo que depois seja difícil retomar as atividades. Tudo bem em relação a isso: sempre fui craque em desligar e depois correr atrás do prejuízo.
Fica aqui meu rápido e sem sal post de fim de ano.Mas achei que era legal fazer uma forcinha e pelo menos produzir algumas frases agora. Ano que vem recomeço com novas energias!
Meu desejo de que a preguiça venha na hora que tiver que vir, sem culpas. Antes de mais nada, que todo mundo se cuide mais e melhor no ano que começa!
quinta-feira, dezembro 31, 2015
segunda-feira, dezembro 21, 2015
Passeios pelas alamedas verdes
Fui, nesses dias, no CEASA (Centrais de Abastecimento de Campinas). Há anos que não ia. Lembro que ia de vez em quando com a minha mãe, que adorava levar os filhos pra esses lugares diferentes. Era aventura em fábrica de biscoito, em central de abastecimento de legumes e flores, em granja no bairro rural, em fazenda pra pegar leite na latona... Outra época, outra Campinas.
Bom, fui lá porque eu e a Dani decidimos que esse Natal iríamos dar plantas e flores de presente. E foi ótimo! O dia estava muito quente, mas quando chegamos na sessão das plantas tudo ficou mais fresco: não apenas porque, afinal, estávamos no meio do verde, mas porque tinha também aquele sprayzinho de água funcionando nos corredores imensos com as barraquinhas de vendedores. Passeamos bastante e saímos com o carro cheio de flores e plantas - suculentas e cactos, orquídeas e plantas carnívoras, plantas com folhões e plantas com folhinhas... e um jasmim cheiroso, pra ir pra janela da minha salinha na unicamp assim que terminarem as férias!
Voltei com as lembranças e os cheiros de anos passados. Mas também com ideias e vislumbres de ideias, oxigenadas provavelmente pela clorofila toda.
Memórias tão antigas que pertenciam a outros átomos. Geradas por outras paixões. Mas também inspirações refrescantes.
Me veio um diálogo à mente - de um diálogo real. Chegava hoje de manhã no ifch quase vazio, as 8 da manhã.
"Professorzinho" - Dona Marli me chama sempre assim, a senhora da limpeza da empresa terceirizada alocada no instituto. Um dínamo. "Professorzinho, não acredito que veio trabalhar!"
"É o último dia, dona Marli. Depois só no começo de janeiro."
"Ah, essa bendita empresa nova [recentemente houve uma troca das empresas e os funcionários migraram, mas com ainda menos direitos] vai nos obrigar a ficar até o dia 24 aqui. Toca sair correndo pra preparar ceia correndo depois de trabalhar. Uma maldade."
"Não acredito dona Marli!"
"Sim, e segunda estou de volta. Quer que regue seus bebês [é como chama as minhas plantinhas]?"
"Não, obrigado. E queria poder te responder em qualquer outro ano." Bem, essa última parte eu não respondi de fato. Só pensei. Queria dizer para ela que a vida era uma merda, que ela não precisava se preocupar comigo, mas que isso a fazia uma linda pessoa. Queria ter uma resposta que não soasse, não importa o quanto eu desejasse o contrário, constrangida.
Pensei o porquê pensei: "por que responder em outro ano?" O passado que talvez idealizamos. O futuro que vai chegar e deixar as amarguras mais anestesiadas. Porque vai passar. Há de passar.
Conversava com uma amiga ontem. Há algo de um princípio reparador no universo. Não exatamente místico, ou cármico, mas você pode pensar assim se quiser. Não exatamente algo compensatório, mas sinta-se à vontade de se confortar com essa noção. É que há um momento que a estatística, the big picture, nos alcança nas mais ínfimas intimidades - e tudo se mistura, não se equalizando. E a justeza da existência se assenta. É tão injusto esperar que a gratidão não discrimine, achar que basta esperar pelo bem. Mas ao mesmo tempo são nessas horas que o pessimismo da crueza da análise nua não funciona - e não vai funcionar mesmo. E acreditar em coisas melhores cria outras coisas - geralmente muito bonitas. De estar fodido, mas ainda sim fazer sorrir.
Bom, fui lá porque eu e a Dani decidimos que esse Natal iríamos dar plantas e flores de presente. E foi ótimo! O dia estava muito quente, mas quando chegamos na sessão das plantas tudo ficou mais fresco: não apenas porque, afinal, estávamos no meio do verde, mas porque tinha também aquele sprayzinho de água funcionando nos corredores imensos com as barraquinhas de vendedores. Passeamos bastante e saímos com o carro cheio de flores e plantas - suculentas e cactos, orquídeas e plantas carnívoras, plantas com folhões e plantas com folhinhas... e um jasmim cheiroso, pra ir pra janela da minha salinha na unicamp assim que terminarem as férias!
Voltei com as lembranças e os cheiros de anos passados. Mas também com ideias e vislumbres de ideias, oxigenadas provavelmente pela clorofila toda.
Memórias tão antigas que pertenciam a outros átomos. Geradas por outras paixões. Mas também inspirações refrescantes.
Me veio um diálogo à mente - de um diálogo real. Chegava hoje de manhã no ifch quase vazio, as 8 da manhã.
"Professorzinho" - Dona Marli me chama sempre assim, a senhora da limpeza da empresa terceirizada alocada no instituto. Um dínamo. "Professorzinho, não acredito que veio trabalhar!"
"É o último dia, dona Marli. Depois só no começo de janeiro."
"Ah, essa bendita empresa nova [recentemente houve uma troca das empresas e os funcionários migraram, mas com ainda menos direitos] vai nos obrigar a ficar até o dia 24 aqui. Toca sair correndo pra preparar ceia correndo depois de trabalhar. Uma maldade."
"Não acredito dona Marli!"
"Sim, e segunda estou de volta. Quer que regue seus bebês [é como chama as minhas plantinhas]?"
"Não, obrigado. E queria poder te responder em qualquer outro ano." Bem, essa última parte eu não respondi de fato. Só pensei. Queria dizer para ela que a vida era uma merda, que ela não precisava se preocupar comigo, mas que isso a fazia uma linda pessoa. Queria ter uma resposta que não soasse, não importa o quanto eu desejasse o contrário, constrangida.
Pensei o porquê pensei: "por que responder em outro ano?" O passado que talvez idealizamos. O futuro que vai chegar e deixar as amarguras mais anestesiadas. Porque vai passar. Há de passar.
Conversava com uma amiga ontem. Há algo de um princípio reparador no universo. Não exatamente místico, ou cármico, mas você pode pensar assim se quiser. Não exatamente algo compensatório, mas sinta-se à vontade de se confortar com essa noção. É que há um momento que a estatística, the big picture, nos alcança nas mais ínfimas intimidades - e tudo se mistura, não se equalizando. E a justeza da existência se assenta. É tão injusto esperar que a gratidão não discrimine, achar que basta esperar pelo bem. Mas ao mesmo tempo são nessas horas que o pessimismo da crueza da análise nua não funciona - e não vai funcionar mesmo. E acreditar em coisas melhores cria outras coisas - geralmente muito bonitas. De estar fodido, mas ainda sim fazer sorrir.
quinta-feira, dezembro 17, 2015
Quick ones
Rapidinhas (a volta dos pensamentos avulsos e aleatórios)
Hoje o facebook (existia facebook na época em que escrevi o último post antes dessa nova fase?) me perguntou se eu queria fazer a retrospectiva do ano. Como parece ser algo generalizado, eu quero que 2015 acabe logo. Existem algumas boas coisas que aconteceram - e, no meio de tanta angústia, elas se sobressaem muito. Não preciso de ajuda pra lembrar, thanks very much, Mark.
***
Eu descobri o como ter estudado o que estudei não me preparou para uma parte da academia bastante dura. Percebi que preciso aprender a ser mais pé no chão para muita coisa. Mas percebi sobretudo que não quero nunca deixar de me angustiar com as coisas difíceis que irão acontecer. A possibilidade de dormir sem remorso quando isso acontece é assustadora. No thank you, life.
***
Faz parte das coisas que aconteceram nos últimos 5 anos e que queria contar eventualmente, mas hoje me peguei lembrando de um mercadinho de rua em Tartu, a segunda maior cidade da Estônia (o que não quer dizer que seja grande, em absoluto). É uma cidade linda, maravilhosa de passear (quando não está debaixo de neve), com prédios lindos e uma história fantástica, onde aconteceu um congresso em que fui. Lugar encantador mesmo. E lá, nesse mercado, do lado de uma praia de rio onde os quase albinos estonianos lagarteavam felizes com um sol de 15 graus, comprei sacos de morangos, framboesas e outras frutas vermelhas, já que estavam na estação, por preços muito baratos! Algo como um saco, pra comer até se empanturrar, por 2 euros, algo assim.
Os cogumelos são incríveis também! Lindos e muito baratos. Já tinha percebido isso quando fui pra Finlândia, fuçando nos mercados de rua, que essas coisas naquelas bandas, são privilégio daquele pessoal. Mas as frutas vermelhas eram algo de outro mundo - e dava pra comer na hora. Doces, deliciosas, saídas de contos de fada.
Não tenho foto das frutas vermelhas - uma coisa linda só de olhar -, mas aqui uma fotinho do mercado e das várias coisas mágicas que você encontrava. Saídas de outra época, parece. De outro mundo. Um que está se redescobrindo, depois de áridas décadas soviéticas que devem ter sido uó.
Thanks, estonian people!
Hoje o facebook (existia facebook na época em que escrevi o último post antes dessa nova fase?) me perguntou se eu queria fazer a retrospectiva do ano. Como parece ser algo generalizado, eu quero que 2015 acabe logo. Existem algumas boas coisas que aconteceram - e, no meio de tanta angústia, elas se sobressaem muito. Não preciso de ajuda pra lembrar, thanks very much, Mark.
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Eu descobri o como ter estudado o que estudei não me preparou para uma parte da academia bastante dura. Percebi que preciso aprender a ser mais pé no chão para muita coisa. Mas percebi sobretudo que não quero nunca deixar de me angustiar com as coisas difíceis que irão acontecer. A possibilidade de dormir sem remorso quando isso acontece é assustadora. No thank you, life.
***
Faz parte das coisas que aconteceram nos últimos 5 anos e que queria contar eventualmente, mas hoje me peguei lembrando de um mercadinho de rua em Tartu, a segunda maior cidade da Estônia (o que não quer dizer que seja grande, em absoluto). É uma cidade linda, maravilhosa de passear (quando não está debaixo de neve), com prédios lindos e uma história fantástica, onde aconteceu um congresso em que fui. Lugar encantador mesmo. E lá, nesse mercado, do lado de uma praia de rio onde os quase albinos estonianos lagarteavam felizes com um sol de 15 graus, comprei sacos de morangos, framboesas e outras frutas vermelhas, já que estavam na estação, por preços muito baratos! Algo como um saco, pra comer até se empanturrar, por 2 euros, algo assim.
Os cogumelos são incríveis também! Lindos e muito baratos. Já tinha percebido isso quando fui pra Finlândia, fuçando nos mercados de rua, que essas coisas naquelas bandas, são privilégio daquele pessoal. Mas as frutas vermelhas eram algo de outro mundo - e dava pra comer na hora. Doces, deliciosas, saídas de contos de fada.
Não tenho foto das frutas vermelhas - uma coisa linda só de olhar -, mas aqui uma fotinho do mercado e das várias coisas mágicas que você encontrava. Saídas de outra época, parece. De outro mundo. Um que está se redescobrindo, depois de áridas décadas soviéticas que devem ter sido uó.
Thanks, estonian people!
sábado, dezembro 12, 2015
Descobrir a si
Fui nesta sexta para Santo André, essa cidade tão estranha, onde pude comprovar a existência daquela palavrinha que aprendi nas aulas de geografia e que mais parece sintoma de resfriado: conurbação. Não deve ser fácil ser conurbado com São Paulo (e adjacências do abecedário). Parece que é tudo uma grande cidade que só termina chegando no pé da serra. É mesmo uma cidade feia, mas com charme... se é que isso faz sentido.
Bom, mas sobre ontem... Fiquei alguns anos sem ir pra lá. Fui algumas vezes enquanto o pai da Dani tinha consultório naquelas bandas. E ontem fui lá de novo, acompanhando, como ajudante de pesquisa, a Dani, que ia fazer a última reunião de grupo de mindfulness que ela estava ajudando a coordenar, no prédio da Escola de Saúde, na praça do Carmo, no centrão de Santo André.
É um programa muito bonito, feito em parceria com a prefeitura de Santo André, para implementar um protocolo de atendimento para trabalhadoras do SUS, sofrendo com depressão, sofrendo com stress, dores crônicas. Daquelas coisas que salvam um pouco o mundo, sabe?
A Dani me pediu pra ajudá-la. "É só ser antropólogo e me ajudar a anotar o que acontece na prática". E foi legal mesmo. Fazia algum tempo que eu não pegava meu caderninho e ficava anotando. Arrisquei até um desenho da coisa toda.
Assisti apenas essa última sessão (foram duas semanas de práticas) e não participei desde o começo, mas deu para perceber que a iniciativa deu certo. As mulheres (eram nove, duas bem jovenzinhas e uma mais idosa, e seis outras com idades no intervalo) fizeram questão de agradecer muito as coordenadoras das práticas de meditação - a Dani e duas amigas dela, uma nutricionista e uma psicóloga. Quiseram deixar claro como tinham gostado, como a meditação tinha ajudado. No final até eu, que estava lá como "ajudante antropólogo que ia tomar umas notas" e fiquei quieto todo o tempo, ganhei abraços de todas - tão agradecidas estavam. Foi muito bom ganhar um abraço de alguém que nunca tinha visto antes e isso não ter sido constrangedor. Abraços de pessoas que não ajudei em absoluto, mas que nem por isso estavam dispostas a deixar de mostrar que estavam felizes. Me senti bem, mesmo que um pouco embaraçado depois. Não fiz nada por aqueles abraços. Mas no final das contas... isso importa para um abraço?
Há algo de muito bacana numa dinâmica de grupo. Depois que a primeira pessoa arruma coragem para contar algo, as outras conseguem fazer também. E os relatos são tão doloridos... Mas bonitos também. A mais idosa logo lembrou como a meditação ajudou nas dores do corpo - e também da mente; ela havia perdido a irmã apenas há duas semanas e estava fragilizada. Estava com medo de ter que ir num psiquiatra e só remédios ajudarem.
Uma outra moça, de vestido vermelho, logo deu o depoimento mais contundente: ela descobriu que não conhecia o próprio corpo... "Tocava o pé e não parecia que era meu", disse. Nestas duas semanas começou um exercício de sentir sensações nas pernas, que não sabia que tinha perdido.
Outra contou como era duro ser taxada de louca; como esse medo, de acabar sendo despedida se descobrirem o nível de stress que passa, faz com que sempre engula as piadinhas, o bullying. E como estava conseguindo não brigar com ninguém. E que isso era importante pra ela.
Mas o que foi mais falado mesmo é a dor. A dor que, para melhorar, primeiro tem que ser reconhecida. Não por acaso, quando a Dani perguntou qual foi o exercício preferido, elas disseram que foi o escaneamento corporal. Havia algo de muito assustador ouvir como essas mulheres, com seus turnos de trabalho extenuantes, de horas de pé a fio, tão fortes, tão resilientes, perderam a conexão com os próprios corpos.
Falaram, quase todas, como descobriram que merecem ser cuidadas também. Porque trabalham com o cuidar de pessoas. E, para isso, precisam estar bem primeiro. A moça de vermelho disse "passei a prestar atenção em mim". Várias concordaram que é muito fácil não se importar. Ou então virarem máquinas, para dessensibilizar o que no fundo não pode ser dessensibilizado. Ou guardarem tudo, ou descontarem nos outros, ou de querer controlar tudo - e não conseguirem, ao final. De como é fácil lidar da pior maneira com o sofrimento dos outros, de deixar de acolher para se proteger. A mais idosa resumiu: "os primeiros pacientes do SUS temos que ser nós". E a moça de vermelho completou: "é bom pensar em mim, em nós, como somos importantes. Me valorizar".
As pessoas estavam descobrindo a si mesmas. E foi difícil ver como a consciência da renúncia de si pode ser avassaladora. Para outras foi demais. Afinal, começaram o grupo com 39 pessoas, há duas semanas. Estas 9 chegaram, como disseram, como sobreviventes. Mas ao mesmo tempo, testemunhar esse sobreviver e esse reconhecer do próprio corpo foi um privilégio.
Que nos sirva de lição, para cuidarmos de nós mesmos também. Ou, como dizia a mensagem de biscoito da sorte, mas no pirulito que eu também ganhei, ao final: "A inspiração que você procura está dentro de você, fique em silêncio e escute" (Rumi).
*******
O lindo desenho, que ficou perfeito no post, é da minha querida amiga Karina, que está virando parceira deste blog! Quando eu contei um pouco do dia de ontem ela quis me mandar um desenho de modelo vivo, para simbolizar o descobrimento de si...
A foto é do pirulito que ganhei da Vera, a simpática nutricionista, que tem um filho de 14 anos que, como eu, adora ver vídeo de joguinhos no youtube.
sábado, dezembro 05, 2015
Um brilho.
A minha geração aprendeu que o ensino público e gratuito provido pelo Estado estava falido. Aquilo que havia sido a joia e o orgulho da geração anterior, a dos meus pais, era coisa do passado. Apenas quem não tinha dinheiro ou talento, quem não queria novamente repetir de ano ou não estava a fim de estudar, "ia para o Estado". A conversa era apenas em que colégio particular você iria ter mais chance de ter uma boa formação e em qual você tinha mais chance de passar no vestibular.
E então, o que vinha a ser mais um golpe, inevitável e melancólico, ao legado do ensino público - o mal disfarçado eufemismo reorganizatório (rumo ao fim do direito ao ensino, na sanha privatizante) - encontrou resistência. Começaram algumas ocupações, realizadas pelos jovens e pelas jovens estudantes secundaristas - ocupações que a imprensa teimava em colocar em suspeita, numa nojenta e tosca tentativa de criminalização, ao invés de louvar o espírito de luta e a recusa da dor de uma vida em constante resignação, tão esperada e certa para esta geração.
Essas ocupações logo multiplicaram-se. Começamos a prestar atenção, admirados com o idealismo destes estudantes. E essa admiração começou a virar orgulho, destas pessoas e sua crença de que algo valia a pena ser defendido.
Logo veio a repressão. As manobras, as chantagens, a tentativa de desmobilizar quem só ficou mais convicto da justeza de sua peleja. Aulas públicas foram organizadas, doações de alimentos foram realizadas, para que estes estudantes tivessem algum apoio em suas ocupações. Mas o protagonismo foi sempre destes e destas adolescentes. E era assim que devia ser. E o sacrifício também foi deles, mas também a nobreza. Recusaram o partidarismo, a cooptação dos movimentos já engessados em suas visões viciadas. Mantiveram como bandeira a defesa por uma educação mais digna e a possibilidade de continuar estudando onde têm direito de assim o fazer. E isso mais do que bastava.
O país pegava fogo. Em Minas, escorremos rumo ao Espírito Santo, correndo incrédulos e dilacerados rumo ao mar. Mas também em revoltas em condições bárbaras no cárcere nordestino. Em genocídios da juventude negra na cidade bonita. No machismo endêmico e assassino. Em revanchismos egoístas e irresponsáveis de um bandido com diploma e mandato. E o governo do estado ressecado e murcho, sedento e indiferente, anestesiado e doente, quis engrossar a voz e colocar a molecada no seu lugar. Quebrou a cara. A cada cena das atrocidades cometidas contra os jovens a vontade apenas intensificava.
Falaram "mas e as reposições? E o perigo do teor político do movimento?" Eu tenho certeza de que estes meninos e estas meninas aprenderam muito mais do que a bonita derivada e a nobre gramática. Aprenderam a boa política. E nós, aprendemos alguma coisa juntos - inclusive a sermos menos cínicos e podermos de novo nos permitir maravilhar.
O governo que resolveu recuar, mas que tentou ser malandro deixando a possibilidade de retomar os planos eufemísticos, pode se livrar, novamente. É provável, aliás, que isso aconteça. Como tem acontecido, incrivelmente e quase incompreensivelmente, nos últimos anos. Mas como todo autoritarismo, este carece de inteligência. Não percebe que aquilo que o constitui é o que o torna abjeto e é o que o destituirá eventualmente.
Pois uma geração de gente muito melhor do que a minha acaba de nascer. E podemos ter alguma esperança novamente. Em um futuro em que os que hoje odeiam irão, aos poucos, sendo colocado de lado. Em que passem como nada mais do que uma memória incômoda e um tanto embaraçosa.
E mesmo um futuro em que aqueles que, como eu, acreditavam que as coisas estavam fadadas - como estava fadado, o ensino público e gratuito, à miséria e à mediocridade -, fadadas a algo, a qualquer coisa, redescubram alguma coisa para chorar emocionados.
E então, o que vinha a ser mais um golpe, inevitável e melancólico, ao legado do ensino público - o mal disfarçado eufemismo reorganizatório (rumo ao fim do direito ao ensino, na sanha privatizante) - encontrou resistência. Começaram algumas ocupações, realizadas pelos jovens e pelas jovens estudantes secundaristas - ocupações que a imprensa teimava em colocar em suspeita, numa nojenta e tosca tentativa de criminalização, ao invés de louvar o espírito de luta e a recusa da dor de uma vida em constante resignação, tão esperada e certa para esta geração.
Essas ocupações logo multiplicaram-se. Começamos a prestar atenção, admirados com o idealismo destes estudantes. E essa admiração começou a virar orgulho, destas pessoas e sua crença de que algo valia a pena ser defendido.
Logo veio a repressão. As manobras, as chantagens, a tentativa de desmobilizar quem só ficou mais convicto da justeza de sua peleja. Aulas públicas foram organizadas, doações de alimentos foram realizadas, para que estes estudantes tivessem algum apoio em suas ocupações. Mas o protagonismo foi sempre destes e destas adolescentes. E era assim que devia ser. E o sacrifício também foi deles, mas também a nobreza. Recusaram o partidarismo, a cooptação dos movimentos já engessados em suas visões viciadas. Mantiveram como bandeira a defesa por uma educação mais digna e a possibilidade de continuar estudando onde têm direito de assim o fazer. E isso mais do que bastava.
O país pegava fogo. Em Minas, escorremos rumo ao Espírito Santo, correndo incrédulos e dilacerados rumo ao mar. Mas também em revoltas em condições bárbaras no cárcere nordestino. Em genocídios da juventude negra na cidade bonita. No machismo endêmico e assassino. Em revanchismos egoístas e irresponsáveis de um bandido com diploma e mandato. E o governo do estado ressecado e murcho, sedento e indiferente, anestesiado e doente, quis engrossar a voz e colocar a molecada no seu lugar. Quebrou a cara. A cada cena das atrocidades cometidas contra os jovens a vontade apenas intensificava.
Falaram "mas e as reposições? E o perigo do teor político do movimento?" Eu tenho certeza de que estes meninos e estas meninas aprenderam muito mais do que a bonita derivada e a nobre gramática. Aprenderam a boa política. E nós, aprendemos alguma coisa juntos - inclusive a sermos menos cínicos e podermos de novo nos permitir maravilhar.
O governo que resolveu recuar, mas que tentou ser malandro deixando a possibilidade de retomar os planos eufemísticos, pode se livrar, novamente. É provável, aliás, que isso aconteça. Como tem acontecido, incrivelmente e quase incompreensivelmente, nos últimos anos. Mas como todo autoritarismo, este carece de inteligência. Não percebe que aquilo que o constitui é o que o torna abjeto e é o que o destituirá eventualmente.
Pois uma geração de gente muito melhor do que a minha acaba de nascer. E podemos ter alguma esperança novamente. Em um futuro em que os que hoje odeiam irão, aos poucos, sendo colocado de lado. Em que passem como nada mais do que uma memória incômoda e um tanto embaraçosa.
E mesmo um futuro em que aqueles que, como eu, acreditavam que as coisas estavam fadadas - como estava fadado, o ensino público e gratuito, à miséria e à mediocridade -, fadadas a algo, a qualquer coisa, redescubram alguma coisa para chorar emocionados.
sábado, novembro 28, 2015
Escutar, esperar e ler
Ainda que de vez em quando goste tanto de um livro que o leia de novo, isso não acontece com muita frequência, claro. E nunca tinha lido duas vezes um livro em uma semana. Mas esse livro, de que quero falar hoje, é especial.
Até menos de um mês atrás nem sequer o conhecia ou tinha ouvido falar, assim como ao seu autor, Jim Dogde – desses escritores americanos que cresceram nos 60 e que ainda teimam em impingir no mundo alguma cor e alguma esperança.
Ganhei o livro da minha querida amiga Karina, que o deu como
combo junto a outro (o Flush da Virginia Woolf) e o recomendou muito, me
assegurando que seria uma leitura “de uma sentada”: seria rápida e valeria a
pena. Prometi que leria e fui enfrentar a vida nos dias seguintes.
E então passei dias bem complicados na semana passada. Muito
trabalho, sim, mas também tive aquela tristeza meio irresistível de quando nos
decepcionamos com o mundo. Então a Karina me disse novamente para ler o livro,
que eu iria gostar.
E assim, um dia depois, numa manhã de domingo preguiçosa,
tendo dormido mais do que o comum para fazer as pazes com a minha paixão pelas
coisas, eu li. Na cama, deitado – e não sentado como recomendado. Mas valeu a
pena mesmo assim.
Ah, esqueço de dizer qual é o livro, né? O livro chama Fup e
conta a história de uma patinha meio desengonçada, bastante geniosa e que ainda
não sabe voar; mas também de Miúdo, um moço grande fazedor de cercas e seu avô
Jake, fazedor de um whiskey especial e de impropérios torrenciais. Ambos moradores
de um desses cantinhos perdidos no mato americano, esquecidos pelo governo
(aparentemente) e por Deus (talvez menos aparentemente). Pessoas simples
que vivem aventuras que nunca chegariam a inspirar ou assombrar mais alguém não fosse a imaginação de algum escritor preocupado com as
coisas pequenas.
A história é singela, como são as personagens, e como é a
escrita. Ao final do livro a gente não pode não ter a impressão de que há uma
mensagem muito importante sendo contada, mas de uma maneira tão simples que
tudo o que aparece como significativo o é de forma franca e lindamente aberta, resistindo
àquelas interpretações corretas e autorizadas. E acho que é isso mesmo o que o Jim
Dodge gostaria, deixando o desfecho propositadamente mais fantástico, ao menos
até que ficasse novamente mais claro, “em direção a alguma nova coerência” (p.
89).
E essa humildade e essa escrita despretensiosa cativam desde
o primeiro momento. A simplicidade da vida de vovô Jake e Miúdo, personagens
apaixonantes, nos chama atenção para a beleza da quietude, da possibilidade do
escutar-se. E escutar também outras coisas.
Como todas as pessoas com a vida simples, elas percebem mais
claramente o relacionamento que têm com as coisas, com os animais sobretudo – é
assim que podemos entender a relação com o porco do mato
Cerra-Dentes, apenas aparentemente o inimigo, destruidor das cercas feitas por
Miúdo e matador do cão Patrão. Não surpreendentemente, Cerra-Dentes é intrépido e
silencioso e, assim, tão imortal como o quase centenário Jake. Mas é sobretudo com Fup – essa patinha tão incrível, que aprende a voar renascendo,
quando Miúdo realmente passa a ouvir – que podemos acompanhar esse diálogo com a natureza. Há, ao longo da narrativa, uma espécie de
tensão vital vinda dessa relação, revelada na advertência do índio Sete Luas, amigo silencioso de
Jake, que por “reverência ou desconfiança da linguagem” (p. 74), sabiamente
lembra que tudo anseia por ser selvagem.
Aprendemos que podemos ouvir, mas que não precisamos explicar
tudo. Aliás, talvez as explicações sejam enganadoras. Será que Fup era uma boa
farejadora, quando saía com Miúdo nas expedições de domingo? É o vovô Jake, com
a experiência que apenas a paciência da imortalidade confere a alguém, que
lembra que “não havia necessidade de provar nada, que a maior parte das coisas
fala por si mesma, mas que também não devia presumir que todos os seus
raciocínios fossem necessariamente corretos. As razões das coisas, advertiu
vovô, eram complicadas” (p. 67).
E talvez nos baste perceber que nos apressamos nas nossas
conclusões e nos nossos julgamentos. É o mesmo Jake que pondera se, na verdade,
Cerra-Dentes não estava, como inicialmente pensaram, de fato tentando matar Fup, naquele dia em que Miúdo a
encontrou encolhida num buraco de cerca cheio de lama. Mas tentando salvá-la –
assim como ela tentou poupar o porco, na mira da espingarda de Miúdo. Que
seriam das nossas ações e nossas escolhas então? Que tipo de voo, que tipo de
liberdade alcançaríamos, mesmo na realização da morte?
É a narrativa de uma linda história que pode se atrasar um
pouco – porque se atrasando, como Fup fazia com Miúdo em suas rondas caçadoras,
talvez boas coisas viessem e um porco do mato vivesse. Como seria bom também pausar de vez em quando. Como vovô Jake depois de se acidentar tentando ensinar Fup a voar: “Sentia-se
fatigado. Tinha uma necessidade enorme de descansar. Andava levando porradas
violentas ultimamente e precisava pensar no assunto, entender o que, com os
diabos, andava acontecendo. Havia alguma coisa, isso era certo. Mas também
tinha certeza de que provavelmente jamais entenderia o que era, e isso
contribuía fortemente para que se sentisse exausto. Era um quebra-cabeça em que
nem todas as peças cabiam. Sabia que era melhor acostumar-se com isso, se fosse
levar a sério esse negócio de imortalidade” (pp. 84-85).
Ler (e reler) Fup, nesses dias, me fez pensar um pouco sobre
essas pausas, esses mistérios, para escutar coisas. E pensar na beleza não da vida como deveria.
Nem, tampouco, da vida como queremos – talvez o grande engano. Mas da vida como
poderia.
As citações correspondem à edição em português de Fup, de
Jim Dodge, publicado pela José Olympio em 2006 e traduzido por Melanie
Laterman.
O maravilhoso desenho da Fup é da querida Karina Kuschnir,
antropóloga e artista, minha amiga – que já tinha me desenhado uma Fup
estatelada no chão e que agora fez mais novas versões para ilustrar este post
tão feliz e tão importante pra mim.
sábado, novembro 21, 2015
Vida simples
A vida era tão mais simples.
Quando? Bem, a resposta está no tempo verbal da frase. Sempre tive a impressão que a vida ia complicando, complicando. Lembro do tempo da jovem adultice com certa nostalgia. E nessa época, lembrava da adolescência, achando que aí sim é que as coisas eram tranquilas (mesmo não parecendo, então). A exceção é justamente a adolescência. A infância, sim, que era boa, mas eu ansiava pelos anos balzaquianos - quando poderia, finalmente, fazer as coisas que queria. Tolice.
Ou pelo menos era assim que eu pensava. Na loucura dos que se deixam levar pela ilusão da felicidade esvanecente eu paro e penso "não vale a pena". Não é assim que vou fazer o começo do restante da minha vida (para torcer o bordão que todos conhecem e quase ninguém entende - mesmo tendo visto o filme, olha só!).
E é tão fácil se perder nessa vaga, tão esperada que torna-se quase inexorável. E sabe o que é pior? É que é mais fácil ainda que isso tudo seja confirmado, quando reagimos a isso de maneira intempestiva. Melhor deixar passar, claro. Mas é fácil falar.
O que me traz ao como. Como a vida era mais simples? Não sei. Mas suspeito que a resposta também esteja no tempo verbal. E esse nosso medo de que é tarde demais? Que o que começamos, começamos. Mas o que nessa altura do campeonato não fizemos, bem...
Mas o que de fato começamos, quando? Continuo começando. Continuo começando. E a beleza do que ainda está por vir me diz para não entrar na loucura dos que desistiram e que atraem a desistência.
Não é fácil. Mas aí chego na razão: porque somos nós que fazemos sentidos. E, no final das contas, é simples sim.
Quando? Bem, a resposta está no tempo verbal da frase. Sempre tive a impressão que a vida ia complicando, complicando. Lembro do tempo da jovem adultice com certa nostalgia. E nessa época, lembrava da adolescência, achando que aí sim é que as coisas eram tranquilas (mesmo não parecendo, então). A exceção é justamente a adolescência. A infância, sim, que era boa, mas eu ansiava pelos anos balzaquianos - quando poderia, finalmente, fazer as coisas que queria. Tolice.
Ou pelo menos era assim que eu pensava. Na loucura dos que se deixam levar pela ilusão da felicidade esvanecente eu paro e penso "não vale a pena". Não é assim que vou fazer o começo do restante da minha vida (para torcer o bordão que todos conhecem e quase ninguém entende - mesmo tendo visto o filme, olha só!).
E é tão fácil se perder nessa vaga, tão esperada que torna-se quase inexorável. E sabe o que é pior? É que é mais fácil ainda que isso tudo seja confirmado, quando reagimos a isso de maneira intempestiva. Melhor deixar passar, claro. Mas é fácil falar.
O que me traz ao como. Como a vida era mais simples? Não sei. Mas suspeito que a resposta também esteja no tempo verbal. E esse nosso medo de que é tarde demais? Que o que começamos, começamos. Mas o que nessa altura do campeonato não fizemos, bem...
Mas o que de fato começamos, quando? Continuo começando. Continuo começando. E a beleza do que ainda está por vir me diz para não entrar na loucura dos que desistiram e que atraem a desistência.
Não é fácil. Mas aí chego na razão: porque somos nós que fazemos sentidos. E, no final das contas, é simples sim.
domingo, novembro 15, 2015
Um céu estrelado
Semana mais do que corrida, continuo adiando a recapitulação do hiato de 5 anos sem blog. Um pouquinho só mais de paciência, tá? Mas ao menos eu me lembrei de uma história que aconteceu nesse meio tempo! Já é alguma coisa, né?
A história é rapidinha, porque conto só o final dela. Depois posso contar o resto, quem sabe...
*******
Em 2013 fui na REA/ABANNE, que é o congresso do Norte-Nordeste-Equatorial de Antropologia. Foi em Boa Vista, RR. Lugar incrível, cheio de espaços esquisitíssimos, de cidade e mato - incrivelmente coexistentes, pra alguém de São Paulo: Ali do lado da avenida, um cais, com uns barquinhos, pra você ir para os igarapés deliciosos e nadar com a turma antropológica, fugir um pouco do calor.
Bom, dando um fast foward, fui com minha amiga Marisa (ex colega de Unicamp e professora na UFRR, que me abrigou lá), e minha amiga Sel (que agora tá na UNILA), pra Lethem, na Guiana. A viagem, de Boa Vista até lá, não é longe, mas um pouco demorada. Mas o lugar é lindo e vale muito a pena! A cidade parecia parada no tempo (coisa feia pra antropólogo dizer, né?), uma gracinha. Umas lojas indianas vende-tudo, umas casinhas, um posto de gasolina da década de 50, um pequeno aeroporto, uma lojinha de uma curandeira, uma padaria, mais umas lojinhas aleatórias, um maravilhoso mercado municipal todo de madeira onde comemos muitíssimo bem, e um barzinho, com guinness muito barata e gelada (quê, você acha que é possível tomar guinness na temperatura ambiente na Guiana?!). Tudo muito calmo, com algumas crianças nadando no rio, um pessoal sentado na varanda vendo a eternidade passar...
Mas o que eu me lembrei foi a viagem de volta. Queríamos voltar logo, para não dirigir de noite, mas o remédio que a Marisa pediu (pra dor de cabeça) demorou um pouco pra ficar pronto, na loja da curandeira-xamã local. A noite nos alcançou na metade do caminho, de uma estrada muito, muito esburacada, de volta ao Brasil.
Perdido por um, perdido por mil, é o que dizem, né? Pois bem. Paramos o carro na estrada (não é que tinha qualquer risco de alguém passar por ali naquela hora, naquele lugar, e nos abarroar), desligamos o farol (de novo, sem risco nenhum de vir algum carro desgovernado ali) e ficamos olhando o céu. O céu mais lindo da minha vida. Não sabia que era possível ver tantas estrelas. Longe de qualquer cidade, o negro acima de nossas cabeças mostra tantas luzes que parece mágico.
E ali, no meio do nada, entre a Guiana e o Brasil, só um pouquinho ao norte do equador, eu pude perceber como há um mundo, literalmente, que eu não conheço e do qual sei muito, muito pouco. Um mundo bonito, misterioso, alheio ao meu próprio quinhão cotidiano (por vezes doce, por vezes amargo), que vai continuar lá mesmo depois que eu voltar pra casa.
Em tempos tão duros, tão tristes, foi bom lembrar disso hoje. Quando eu começo a achar que as coisas estão cagadas demais, feias demais, é uma felicidade saber que a despeito das bombas, há lugares em que você consegue enxergar todo o firmamento e que lá a humanidade entra em perspectiva.
A história é rapidinha, porque conto só o final dela. Depois posso contar o resto, quem sabe...
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Em 2013 fui na REA/ABANNE, que é o congresso do Norte-Nordeste-Equatorial de Antropologia. Foi em Boa Vista, RR. Lugar incrível, cheio de espaços esquisitíssimos, de cidade e mato - incrivelmente coexistentes, pra alguém de São Paulo: Ali do lado da avenida, um cais, com uns barquinhos, pra você ir para os igarapés deliciosos e nadar com a turma antropológica, fugir um pouco do calor.
Bom, dando um fast foward, fui com minha amiga Marisa (ex colega de Unicamp e professora na UFRR, que me abrigou lá), e minha amiga Sel (que agora tá na UNILA), pra Lethem, na Guiana. A viagem, de Boa Vista até lá, não é longe, mas um pouco demorada. Mas o lugar é lindo e vale muito a pena! A cidade parecia parada no tempo (coisa feia pra antropólogo dizer, né?), uma gracinha. Umas lojas indianas vende-tudo, umas casinhas, um posto de gasolina da década de 50, um pequeno aeroporto, uma lojinha de uma curandeira, uma padaria, mais umas lojinhas aleatórias, um maravilhoso mercado municipal todo de madeira onde comemos muitíssimo bem, e um barzinho, com guinness muito barata e gelada (quê, você acha que é possível tomar guinness na temperatura ambiente na Guiana?!). Tudo muito calmo, com algumas crianças nadando no rio, um pessoal sentado na varanda vendo a eternidade passar...
Mas o que eu me lembrei foi a viagem de volta. Queríamos voltar logo, para não dirigir de noite, mas o remédio que a Marisa pediu (pra dor de cabeça) demorou um pouco pra ficar pronto, na loja da curandeira-xamã local. A noite nos alcançou na metade do caminho, de uma estrada muito, muito esburacada, de volta ao Brasil.
Perdido por um, perdido por mil, é o que dizem, né? Pois bem. Paramos o carro na estrada (não é que tinha qualquer risco de alguém passar por ali naquela hora, naquele lugar, e nos abarroar), desligamos o farol (de novo, sem risco nenhum de vir algum carro desgovernado ali) e ficamos olhando o céu. O céu mais lindo da minha vida. Não sabia que era possível ver tantas estrelas. Longe de qualquer cidade, o negro acima de nossas cabeças mostra tantas luzes que parece mágico.
E ali, no meio do nada, entre a Guiana e o Brasil, só um pouquinho ao norte do equador, eu pude perceber como há um mundo, literalmente, que eu não conheço e do qual sei muito, muito pouco. Um mundo bonito, misterioso, alheio ao meu próprio quinhão cotidiano (por vezes doce, por vezes amargo), que vai continuar lá mesmo depois que eu voltar pra casa.
Em tempos tão duros, tão tristes, foi bom lembrar disso hoje. Quando eu começo a achar que as coisas estão cagadas demais, feias demais, é uma felicidade saber que a despeito das bombas, há lugares em que você consegue enxergar todo o firmamento e que lá a humanidade entra em perspectiva.
domingo, novembro 08, 2015
O Rio de Janeiro continua lindo, ou a promessa da recapitulação
Um pouquinho atrasado (de novo) e coisa rápida. Mas não queria deixar passar a ideia de um post por semana. Fica como um update.
Aliás, talvez os próximos posts sejam assim, até o mês que vem. Entro num regime meio insano de final de semestre, então o tempo, sempre ele, vai ficar um pouco curto. Mas ao mesmo tempo já entro naquela fase "vislumbrando a reta final"!
Um dos motivos por não ter escrito ontem foi que estava viajando de volta pra casa. Fui rapidinho pro Rio, lugar que adoro, mas que há alguns anos não ia. Sempre me sinto bem indo pra lá - e dessa vez não foi diferente. Fiz passeios muito bacanas, tive boas conversas de trabalho e encontrei pessoas queridas!
Como deve ter ficado subtendido pelo post da semana passada, tive que fazer alguns exames por conta de um desconforto constante nos últimos tempos - e que chegou naquele nível que não dava mais pra ignorar e empurrar com a barriga. Descobri que estou com refluxo (mais precisamente hérnia de hiato), algo muito chato realmente, mas que pelo jeito é tratável sem muito problema e que tem a estranha vantagem de me fazer tentar seguir um regime mais saudável. Aquele que os nutricionistas falam que a gente deveria fazer de qualquer maneira, sabe? Comer menos nas refeições, fazer lanches intermediários, comer menos fritura, jantar pouco e não dormir logo depois disso. Vamos ver, vai ser um pouco difícil refazer hábitos alimentares - como é mudar qualquer coisa cotidiana - mas a alternativa não é muito bacana, acredite.
E tenho uma boa nova. Mas que não vale a pena contar sem antes dar um pequeno resumo de algumas das coisas que aconteceram com a minha vidinha desde 2010, o último post da primeira fase, digamos assim, do blog. Então fica aqui pelo menos a promessa de que, quando conseguir, nas próximas semanas, faço um pequeno resumo dos últimos 5 anos, tudo bem? Coisa fácil, pá pum, easy peasy lemon squeezy, síntese é comigo mesmo!
(Na foto, a linda Lagoa Rodrigo de Freitas, durante passeio com minha amiga Karina. O dia estava nublado, mas sabe que eu até gosto do Rio assim também?)
Aliás, talvez os próximos posts sejam assim, até o mês que vem. Entro num regime meio insano de final de semestre, então o tempo, sempre ele, vai ficar um pouco curto. Mas ao mesmo tempo já entro naquela fase "vislumbrando a reta final"!
Um dos motivos por não ter escrito ontem foi que estava viajando de volta pra casa. Fui rapidinho pro Rio, lugar que adoro, mas que há alguns anos não ia. Sempre me sinto bem indo pra lá - e dessa vez não foi diferente. Fiz passeios muito bacanas, tive boas conversas de trabalho e encontrei pessoas queridas!
Como deve ter ficado subtendido pelo post da semana passada, tive que fazer alguns exames por conta de um desconforto constante nos últimos tempos - e que chegou naquele nível que não dava mais pra ignorar e empurrar com a barriga. Descobri que estou com refluxo (mais precisamente hérnia de hiato), algo muito chato realmente, mas que pelo jeito é tratável sem muito problema e que tem a estranha vantagem de me fazer tentar seguir um regime mais saudável. Aquele que os nutricionistas falam que a gente deveria fazer de qualquer maneira, sabe? Comer menos nas refeições, fazer lanches intermediários, comer menos fritura, jantar pouco e não dormir logo depois disso. Vamos ver, vai ser um pouco difícil refazer hábitos alimentares - como é mudar qualquer coisa cotidiana - mas a alternativa não é muito bacana, acredite.
E tenho uma boa nova. Mas que não vale a pena contar sem antes dar um pequeno resumo de algumas das coisas que aconteceram com a minha vidinha desde 2010, o último post da primeira fase, digamos assim, do blog. Então fica aqui pelo menos a promessa de que, quando conseguir, nas próximas semanas, faço um pequeno resumo dos últimos 5 anos, tudo bem? Coisa fácil, pá pum, easy peasy lemon squeezy, síntese é comigo mesmo!
(Na foto, a linda Lagoa Rodrigo de Freitas, durante passeio com minha amiga Karina. O dia estava nublado, mas sabe que eu até gosto do Rio assim também?)
domingo, novembro 01, 2015
Conversa de consultório
Post um pouco atrasado... era pra ter saído ontem. Eu já estava escrevendo toda uma crítica social espirituosa e um pouco apimentada. Mas resolvi que ia deixar guardado, o texto. Quem sabe depois... quem sabe nunca... tenho ficado cansado do embate tosco e polarizado.
Ao invés disso, um post mais breve, mais light. E um pouco estranho.
Tenho tido umas dores esquisitas ultimamente. Que me fizeram cortar o glúten (e agora, querendo cortar o leite, pra ver se ajuda) e, essa semana, fazer alguns exames meio que a contragosto. Um deles, uma endoscopia, me rendeu uma conversa que (não) tento contar mais adiante.
***
Lá fui eu, sexta cedinho, de jejum, no consultório de gastrologia. É incrível porque é uma verdadeira linha de produção, para um exame não tão simples. Espera na salinha com mesas com revistas de variedade, entra na outra salinha, deita de lado na maca, ganha agulha na mão, "ai, dói", toma um gás na fuça, apaga. Repete o processo com o próximo alguns minutinhos depois. Eu ganhei um baita de um hematoma na mão por conta dessa agilidade.
E aí acordo, talvez meia hora depois, não sei, não lembro, em outra salinha ainda, numa poltroninha reclinável, ao lado de outras pessoas desacordadas em suas poltroninhas reclináveis. Cena estranha, né? Também achei. Eu que não tenho lembrança nenhuma de ser carregado, como vi uma moça que estava chegando nesta terceira salinha ser. Ainda bem grogue, fiquei olhando para as outras 3 pessoas ali apagadas (uma enfermeira por duas vezes ficou chamando uma delas, ainda na maca, mas nada, nem um sinal, mesmo com uma sacudida). Estava tentando entender o que tinha acontecido. Nem nas piores bebedeiras eu fico sem me lembrar de nada.
Fiquei vendo as pessoas apagadas e uma outra moça, mais velha, que estava olhando sonolenta pros lados, como uma passageira de avião acordando depois de uma turbulência, ou depois das luzes se acenderem; e então tentar se localizar - justamente o que não dá pra fazer num avião em movimento. Você espera a familiaridade da sua cama, então demora um pouquinho pra perceber onde está. Não sei se é uma sensação necessariamente ruim, mas beira o surreal.
Dois minutinhos, a moça, já mais consciente, é levada para outra salinha (quantas salinhas existem?). Espero mais um pouco e logo uma enfermeira (será a mesma de antes?), que já percebeu que estou acordado, se aproxima, pega no meu braço e me leva dali.
Chego na mesma salinha (a quarta, se você não está contando) da moça que acabou de ser levada. Ela está sentada na frente de uma mesa, tomando chá e comendo bolachas. Começo a fazer o mesmo. O chá está bom, a bolacha também. Mas também, depois de horas de jejum de comida e bebida, qualquer coisa ia ser bem vinda!
E aí começa uma conversa estranha, devagar, arrastada. Os raciocínios ainda nublados, ainda acordando, tentando entrar em movimento. Falamos de nossos sintomas, claro. Por quê estamos ali? Não é por causa do chá - que está muito bom, por sinal. Falamos do stress da vida cotidiana. Seria inevitável chegar no assunto Cantareira ou na lama da crise nacional? Aquela conversa de reconhecimento de território nos não-lugares, de que fala o Augé? Dos shoppings e aeroportos, espaços de passagem em que as fronteiras sociais estão sendo justamente testadas e o ressentimento aflora?
Mas não. Descobrimos que gostamos de quadrinhos. Conversa vai e vem; algum tempo depois chega a enfermeira (será outra?), trazendo um rapaz, que deve ter acordado recentemente, que senta-se e pega seu copo de chá e sua cota de bolachas. A enfermeira então pergunta se estamos bem para irmos. -Só mais um pouco, já já. A conversa está boa, o chá não muito quente, não sei em que sala estou. Fight the power, resistimos ao sistema!
Foram ótimos - o que, 10 minutos? No final fomos levados para a sala da entrada (essa bem grande), fora do labirinto clínico. Me despedi da minha amiga, que nem sei o nome. "Boa sorte, heim?!", "Tchau!".
O problema é que eu não lembro do que falamos sobre os quadrinhos...
Ao invés disso, um post mais breve, mais light. E um pouco estranho.
Tenho tido umas dores esquisitas ultimamente. Que me fizeram cortar o glúten (e agora, querendo cortar o leite, pra ver se ajuda) e, essa semana, fazer alguns exames meio que a contragosto. Um deles, uma endoscopia, me rendeu uma conversa que (não) tento contar mais adiante.
***
Lá fui eu, sexta cedinho, de jejum, no consultório de gastrologia. É incrível porque é uma verdadeira linha de produção, para um exame não tão simples. Espera na salinha com mesas com revistas de variedade, entra na outra salinha, deita de lado na maca, ganha agulha na mão, "ai, dói", toma um gás na fuça, apaga. Repete o processo com o próximo alguns minutinhos depois. Eu ganhei um baita de um hematoma na mão por conta dessa agilidade.
E aí acordo, talvez meia hora depois, não sei, não lembro, em outra salinha ainda, numa poltroninha reclinável, ao lado de outras pessoas desacordadas em suas poltroninhas reclináveis. Cena estranha, né? Também achei. Eu que não tenho lembrança nenhuma de ser carregado, como vi uma moça que estava chegando nesta terceira salinha ser. Ainda bem grogue, fiquei olhando para as outras 3 pessoas ali apagadas (uma enfermeira por duas vezes ficou chamando uma delas, ainda na maca, mas nada, nem um sinal, mesmo com uma sacudida). Estava tentando entender o que tinha acontecido. Nem nas piores bebedeiras eu fico sem me lembrar de nada.
Fiquei vendo as pessoas apagadas e uma outra moça, mais velha, que estava olhando sonolenta pros lados, como uma passageira de avião acordando depois de uma turbulência, ou depois das luzes se acenderem; e então tentar se localizar - justamente o que não dá pra fazer num avião em movimento. Você espera a familiaridade da sua cama, então demora um pouquinho pra perceber onde está. Não sei se é uma sensação necessariamente ruim, mas beira o surreal.
Dois minutinhos, a moça, já mais consciente, é levada para outra salinha (quantas salinhas existem?). Espero mais um pouco e logo uma enfermeira (será a mesma de antes?), que já percebeu que estou acordado, se aproxima, pega no meu braço e me leva dali.
Chego na mesma salinha (a quarta, se você não está contando) da moça que acabou de ser levada. Ela está sentada na frente de uma mesa, tomando chá e comendo bolachas. Começo a fazer o mesmo. O chá está bom, a bolacha também. Mas também, depois de horas de jejum de comida e bebida, qualquer coisa ia ser bem vinda!
E aí começa uma conversa estranha, devagar, arrastada. Os raciocínios ainda nublados, ainda acordando, tentando entrar em movimento. Falamos de nossos sintomas, claro. Por quê estamos ali? Não é por causa do chá - que está muito bom, por sinal. Falamos do stress da vida cotidiana. Seria inevitável chegar no assunto Cantareira ou na lama da crise nacional? Aquela conversa de reconhecimento de território nos não-lugares, de que fala o Augé? Dos shoppings e aeroportos, espaços de passagem em que as fronteiras sociais estão sendo justamente testadas e o ressentimento aflora?
Mas não. Descobrimos que gostamos de quadrinhos. Conversa vai e vem; algum tempo depois chega a enfermeira (será outra?), trazendo um rapaz, que deve ter acordado recentemente, que senta-se e pega seu copo de chá e sua cota de bolachas. A enfermeira então pergunta se estamos bem para irmos. -Só mais um pouco, já já. A conversa está boa, o chá não muito quente, não sei em que sala estou. Fight the power, resistimos ao sistema!
Foram ótimos - o que, 10 minutos? No final fomos levados para a sala da entrada (essa bem grande), fora do labirinto clínico. Me despedi da minha amiga, que nem sei o nome. "Boa sorte, heim?!", "Tchau!".
O problema é que eu não lembro do que falamos sobre os quadrinhos...
sábado, outubro 24, 2015
Era uma vez... muito tempo atrás, num espaço bem, bem longe...
Aviso: parte deste post fará sentido em dois meses, aproximadamente (assim espero, será?). Sim, lá pelo dia 25 de dezembro (ou no entorno, se eu estiver empanturrado de pernil ou muito bêbado de cidra cereser no dia de Natal) eu escreverei um outro post, neste blog mesmo, acessível aqui. ("aqui" é o link que hoje, 24 de outubro, ainda não existe)
É, por um lado, uma experiência, por outro, uma homenagem ao Chris Claremont, roteirista de quadrinhos americano e que eu admirava muito quando moleque e que, não sei porque cargas d'água, lembrei esses dias e que me inspirou pra esse post, mas sobre quem eu já tinha falado aqui.
Lendo as histórias do meu xará não havia como não ter a impressão que ele pensava coisas com anos de antecedência, na composição da trama dos heróis nos quadrinhos. Sobretudo em quadrinhos isso é difícil de fazer, já que normalmente é uma mídia bastante imediatista e, na verdade, longe de intocável nos cânones que constrói. As histórias dos personagens são constantemente ignoradas pelos roteiristas, que resolvem criar uma nova origem, uma nova saga... as vezes mudando completamente o perfil de um personagem já estabelecido. É relativamente comum isso no mundo da oitava arte.
Então eu ficava realmente impressionado com as histórias do Claremont: quando relia alguma, depois de um tempo, eu percebia que ele já havia lançado alguma pista, que na época da publicação poderia muito bem passar despercebida, mas que, anos depois, faria sentido à luz do que vinha posteriormente. Seria um roteirista de quadrinhos fenomenologista? (peço desculpas, piramos numa discussão sobre fenomenologia essa semana, lendo o bonito livro do Rabinow sobre Marrocos: no livro, na sua própria organização, o sentido de algo é dado pelos efeitos, retrospectivos, digamos assim, do que vem depois. Ou algo assim, esqueçam isso. E é besteira, não tem nada de fenomenologia nesse futurismo bobo - é só alguém que planejava bem suas histórias e tinha uns bons truques na manga - o Claremont, não o Rabinow! Sim, pois é. De qualquer forma, esse começar do meio pra ir pro começo não dá certo... -atenção! Referência ao experimento!! Até que dê certo!)
Pois bem, essa experiência de atualização de uma memória que não é só minha, mas que ainda assim é única para mim, deve acontecer na reflexão no futuro!
***
Ao contrário de Humphrey Bogart (1899-1957), que em certo momento de sua carreira já havia consolidado uma imagem na sua persona artística (do personagem durão, mas com uma vulnerabilidade desarmante), apesar da descontinuidade com sua origem social (o que aconteceu, muitas vezes, à sua própria revelia, como o período de sua produção durante a guerra mostrou, como fundamental neste processo, sobretudo com O Falcão Maltês, 1941, Casablanca, 1942), como conta lindamente o meu amigo Felipe, que agora acaba de lançar em livro sua dissertação de mestrado, temos um caso aparentemente diferente, até mesmo invertido, com o Henry Fonda (1905-1982), que quando protagonizou o hiper vilão Frank em Era uma Vez no Oeste (1968), chocou o público e fez desta quebra do pacto (mesmo que ao reconhecê-lo), um dos elementos da imortalidade do que muitos consideram a obra prima de Sergio Leone (1929-1989).
Claro, são contextos completamente diferentes, como me lembrou o Felipe nessa semana, durante o lançamento do seu livro. Filmado na Espanha, o western do Leone não se encaixava exatamente no contexto clássico de Hollywood, mesmo lançando e relançando atores e atrizes ícones do cinema mainstream americano, uma certa tradição européia (mais precisamente, italiana), estava indelevelmente impressa em cada frame de Era uma Vez no Oeste (e em outros filmes do Leone deste período).
O momento também era diferente. Em 1968, ano do lançamento de Era uma Vez... algumas das convenções de gênero mais estruturantes do cinema já estavam consolidadas (algumas das quais graças à relação de Bogart com outros representantes dos grandes estúdios). Mas talvez exatamente por isso, o que o Felipe mostra para os atores e atrizes de Hollywood, cuja vida e trajetória, esmiuçada na tensão entre performance e persona e origem, revela um espaço de atuação (literalmente) bastante limitado no meio das disputas mobilizadas pelos grandes estúdios e rebatidas pela audiência cada vez maior e mais relevante na constituição da "Indústria", talvez possamos contrapor com o que faz Leone, para pensar em uma espécie de sociologia feita pelo diretor italiano. Justamente por subverter uma análise do universo hollywoodiano.
Em 1968, ao contrário daquele momento definidor do período da guerra para Bogart, Fonda já era um ator com seu lugar consolidado em Hollywood. Mas é exatamente aí que acontece a subversão. Leone tinha plena consciência de que o público estava acostumado a associar Fonda com personagens bons, heróis, moralmente superiores. E é através de uma ressignificação, processada tecnicamente com maestria, dos olhos azuis angelicais, sinceros, capturados nos famosos e idiossincráticos zoons de Leone, possibilitada pela nova composição, com o afastamento mínimo da câmera, que agora ajuda a compor o retrato de um homem vil, sádico, justamente amoral, apenas pela barba por fazer e o sorriso maldoso, que o público se surpreende, justamente por um choque da quebra do pacto, da morte da persona com a que estavam familiarizados, mas que ao mesmo tempo aprende a reconhecer a linguagem e o código proposto, sobretudo em contraposição ao rosto duro, amargo, mas singelamente relacionável de Jason Robards (1922-2000), também portador de olhos azuis, mais aguados e uma barba ainda mais cerrada, índice de um sujeito batido, endurecido, mas também marcado por uma dignidade no sofrimento - e, sobretudo, destituído da vilania pouco terrena, pouco humana e mais demarcada por um afastamento quase místico de concretude, uma ideia de mal, representada por Fonda (nesse sentido, Cheyenne, personagem de Robards, com nome indígena, mas bastante euroamericano, bem poderia ser interpretado por Bogart, se este ainda estivesse vivo então) - que este filme é, para mim, uma tentativa de reflexividade da própria cultura ocidental (heim, pera lá, como isso aconteceu? Onde? Quando?). Assim, como Era uma Vez na América (1984) e Quando Explode a Vingança (1971), os outros filmes da trilogia da América). Uma narração, em voz alta, do ritmo de transformação da vida, mas para a consolidação de algo bem particular e que tende a se tornar quase paisagem, natural - a vida tal como ela é/chegou a ser. Narração de períodos longos, num só fôlego, como Saramago. Nesse sentido, não há como não lamentar, angustiado, o fim constante que se anuncia, sobretudo na ideia de uma trilogia de uma saga (como são as trilogias, aliás): um fim que é eternamente velado; se está sempre morrendo, sempre perdendo inexoravelmente algo que mal chegou a ser e, por exatamente por ser história, tem em si todo o peso da destruição do que é atemporal.
Resta compreender o enigmático personagem anônimo, identificado apenas pelo nome de um instrumento (mas, sobretudo, da evocação musical que lhe acompanha na trilha magistral de Morricone, 1928-), Harmonica (gaita), interpretado por um outro ator de olhos azuis, quase mortos, de Charles Bronson (1921-2003). Bronson não se parece em nada com o índio que viu seu irmão ser morto pelo personagem de Fonda quando adolescente (talvez ele pudesse ser um Cheyenne? Mas não, não para Leone - que justamente pirraceava com as convenções "físicas" dos atores! Mesmo as vozes não precisavam combinar com o personagem - as dublagens toscas são também marca registrada, que ele de fato não achava ser um defeito).
Mas não importa. O que importa é o rosto talhado quase por uma lente expressionista de Leone. Não há reconhecimento, exceto pela ambiguidade do personagem de Bronson - e, sobretudo, no de Robards.
Pois essa é a expectativa de uma geração, a ser atualizada daqui a dois meses. Será que vai dar certo?
É, por um lado, uma experiência, por outro, uma homenagem ao Chris Claremont, roteirista de quadrinhos americano e que eu admirava muito quando moleque e que, não sei porque cargas d'água, lembrei esses dias e que me inspirou pra esse post, mas sobre quem eu já tinha falado aqui.
Lendo as histórias do meu xará não havia como não ter a impressão que ele pensava coisas com anos de antecedência, na composição da trama dos heróis nos quadrinhos. Sobretudo em quadrinhos isso é difícil de fazer, já que normalmente é uma mídia bastante imediatista e, na verdade, longe de intocável nos cânones que constrói. As histórias dos personagens são constantemente ignoradas pelos roteiristas, que resolvem criar uma nova origem, uma nova saga... as vezes mudando completamente o perfil de um personagem já estabelecido. É relativamente comum isso no mundo da oitava arte.
Então eu ficava realmente impressionado com as histórias do Claremont: quando relia alguma, depois de um tempo, eu percebia que ele já havia lançado alguma pista, que na época da publicação poderia muito bem passar despercebida, mas que, anos depois, faria sentido à luz do que vinha posteriormente. Seria um roteirista de quadrinhos fenomenologista? (peço desculpas, piramos numa discussão sobre fenomenologia essa semana, lendo o bonito livro do Rabinow sobre Marrocos: no livro, na sua própria organização, o sentido de algo é dado pelos efeitos, retrospectivos, digamos assim, do que vem depois. Ou algo assim, esqueçam isso. E é besteira, não tem nada de fenomenologia nesse futurismo bobo - é só alguém que planejava bem suas histórias e tinha uns bons truques na manga - o Claremont, não o Rabinow! Sim, pois é. De qualquer forma, esse começar do meio pra ir pro começo não dá certo... -atenção! Referência ao experimento!! Até que dê certo!)
Pois bem, essa experiência de atualização de uma memória que não é só minha, mas que ainda assim é única para mim, deve acontecer na reflexão no futuro!
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Ao contrário de Humphrey Bogart (1899-1957), que em certo momento de sua carreira já havia consolidado uma imagem na sua persona artística (do personagem durão, mas com uma vulnerabilidade desarmante), apesar da descontinuidade com sua origem social (o que aconteceu, muitas vezes, à sua própria revelia, como o período de sua produção durante a guerra mostrou, como fundamental neste processo, sobretudo com O Falcão Maltês, 1941, Casablanca, 1942), como conta lindamente o meu amigo Felipe, que agora acaba de lançar em livro sua dissertação de mestrado, temos um caso aparentemente diferente, até mesmo invertido, com o Henry Fonda (1905-1982), que quando protagonizou o hiper vilão Frank em Era uma Vez no Oeste (1968), chocou o público e fez desta quebra do pacto (mesmo que ao reconhecê-lo), um dos elementos da imortalidade do que muitos consideram a obra prima de Sergio Leone (1929-1989).
Claro, são contextos completamente diferentes, como me lembrou o Felipe nessa semana, durante o lançamento do seu livro. Filmado na Espanha, o western do Leone não se encaixava exatamente no contexto clássico de Hollywood, mesmo lançando e relançando atores e atrizes ícones do cinema mainstream americano, uma certa tradição européia (mais precisamente, italiana), estava indelevelmente impressa em cada frame de Era uma Vez no Oeste (e em outros filmes do Leone deste período).
O momento também era diferente. Em 1968, ano do lançamento de Era uma Vez... algumas das convenções de gênero mais estruturantes do cinema já estavam consolidadas (algumas das quais graças à relação de Bogart com outros representantes dos grandes estúdios). Mas talvez exatamente por isso, o que o Felipe mostra para os atores e atrizes de Hollywood, cuja vida e trajetória, esmiuçada na tensão entre performance e persona e origem, revela um espaço de atuação (literalmente) bastante limitado no meio das disputas mobilizadas pelos grandes estúdios e rebatidas pela audiência cada vez maior e mais relevante na constituição da "Indústria", talvez possamos contrapor com o que faz Leone, para pensar em uma espécie de sociologia feita pelo diretor italiano. Justamente por subverter uma análise do universo hollywoodiano.
Em 1968, ao contrário daquele momento definidor do período da guerra para Bogart, Fonda já era um ator com seu lugar consolidado em Hollywood. Mas é exatamente aí que acontece a subversão. Leone tinha plena consciência de que o público estava acostumado a associar Fonda com personagens bons, heróis, moralmente superiores. E é através de uma ressignificação, processada tecnicamente com maestria, dos olhos azuis angelicais, sinceros, capturados nos famosos e idiossincráticos zoons de Leone, possibilitada pela nova composição, com o afastamento mínimo da câmera, que agora ajuda a compor o retrato de um homem vil, sádico, justamente amoral, apenas pela barba por fazer e o sorriso maldoso, que o público se surpreende, justamente por um choque da quebra do pacto, da morte da persona com a que estavam familiarizados, mas que ao mesmo tempo aprende a reconhecer a linguagem e o código proposto, sobretudo em contraposição ao rosto duro, amargo, mas singelamente relacionável de Jason Robards (1922-2000), também portador de olhos azuis, mais aguados e uma barba ainda mais cerrada, índice de um sujeito batido, endurecido, mas também marcado por uma dignidade no sofrimento - e, sobretudo, destituído da vilania pouco terrena, pouco humana e mais demarcada por um afastamento quase místico de concretude, uma ideia de mal, representada por Fonda (nesse sentido, Cheyenne, personagem de Robards, com nome indígena, mas bastante euroamericano, bem poderia ser interpretado por Bogart, se este ainda estivesse vivo então) - que este filme é, para mim, uma tentativa de reflexividade da própria cultura ocidental (heim, pera lá, como isso aconteceu? Onde? Quando?). Assim, como Era uma Vez na América (1984) e Quando Explode a Vingança (1971), os outros filmes da trilogia da América). Uma narração, em voz alta, do ritmo de transformação da vida, mas para a consolidação de algo bem particular e que tende a se tornar quase paisagem, natural - a vida tal como ela é/chegou a ser. Narração de períodos longos, num só fôlego, como Saramago. Nesse sentido, não há como não lamentar, angustiado, o fim constante que se anuncia, sobretudo na ideia de uma trilogia de uma saga (como são as trilogias, aliás): um fim que é eternamente velado; se está sempre morrendo, sempre perdendo inexoravelmente algo que mal chegou a ser e, por exatamente por ser história, tem em si todo o peso da destruição do que é atemporal.
Resta compreender o enigmático personagem anônimo, identificado apenas pelo nome de um instrumento (mas, sobretudo, da evocação musical que lhe acompanha na trilha magistral de Morricone, 1928-), Harmonica (gaita), interpretado por um outro ator de olhos azuis, quase mortos, de Charles Bronson (1921-2003). Bronson não se parece em nada com o índio que viu seu irmão ser morto pelo personagem de Fonda quando adolescente (talvez ele pudesse ser um Cheyenne? Mas não, não para Leone - que justamente pirraceava com as convenções "físicas" dos atores! Mesmo as vozes não precisavam combinar com o personagem - as dublagens toscas são também marca registrada, que ele de fato não achava ser um defeito).
Mas não importa. O que importa é o rosto talhado quase por uma lente expressionista de Leone. Não há reconhecimento, exceto pela ambiguidade do personagem de Bronson - e, sobretudo, no de Robards.
Pois essa é a expectativa de uma geração, a ser atualizada daqui a dois meses. Será que vai dar certo?
sábado, outubro 17, 2015
Estilingue
E assim, sem mais, esse espacinho que foi tão importante numa época, deu um bip de vida!
Cinco anos sem um pio e, de repente, um texto sobre ipês amarelos. Sem explicação, sem dar justificativa, "você some sem nem dar notícia?!" dizem os amigos que me dão aquela bronca-bem-humorada-mas-que-é-uma-bronca-mesmo-assim por sumir. Para esses eu costumo dar o acanhado "puxa, ultimamente está tão corrido, mas a gente combina algo sim" - resposta que mais ou menos serve aqui também. Em nenhum dos dois casos a resposta é muito satisfatória. E é meio covarde, na verdade. Sincera ma non troppo.
Em parte, sim, a vida ficou corrida. Mas na realidade acho que eu precisei dar um tempo disso aqui. Não que eu não tenha ficado com vontade de escrever, em um momento ou em outro. E ensaiei retomar esse blog algumas vezes nesse tempo todo. Mas não fazia sentido. E eu não tinha certeza se faria sentido alguma vez mais. E ainda não tenho certeza. Mas, se estou agora escrevendo o segundo post é porque talvez tenha algo ainda pra dizer, não?
Mas tergiverso. Algo pra dizer sempre tem. Aliás, o que não falta é coisa pra contar, de 2010 até agora. Vamos ver, se realmente engrenar de novo eu vou contando aos poucos alguns highlights e algumas pequenas alegrias e algumas pequenas neuroses - sempre material divertido, que dispensa a grandiosidade revolucionária dos grandes eventos para realmente importar para alguém. Mas esse "sentido" de que estou falando é, na verdade, bem egoísta. Eu sei que eu contava para os outros (e poucos outros, uma vez que pouquíssima gente lia este blog - e, agora, depois desse hiato todo, menos ainda), mas contava para os outros para que eu pudesse contar algo que eu precisava para mim mesmo. Euzinho que nunca fiz análise ou terapia.
Bom, para não matar qualquer chance de gostar de escrever aqui, uma historinha, pra não ficar só nessa auto-análise toda.
***
Esses dias foi dia das crianças. Eu gosto muito de ver os amigos de facebook (eu tinha facebook em 2010, quando parei com esse blog?) mudando as fotos de perfil. Curto todas. Mas eu mesmo nunca tinha colocado uma minha. Tenho umas fotos bonitinhas de criança, mas nunca aderi ao movimento. Aliás, esse ano foi a primeira vez que aderi a essas mudanças de perfil por alguma coisa, com algumas campanhas muito necessárias nessa época de fundamentalismos... Opa, volto a fazer rodeios!
Foco!
Enfim, mudei a foto de perfil, para uma minha esticando o elástico de um estilingue e olhando pro outro lado, morrendo de medo. E eu lembro desse dia! Devia ter uns 5, 6 anos no máximo. Usava aquele macacão que eu adorava (aliás, adorava macacões, principalmente por causa do bolso de canguru, e fiquei bem bravo quando o último que tive ficou pequeno demais pra usar e a moda tinha mudado e ninguém usava mais) e umas sandálias franciscanas que usava com meias. Sempre com meias - aliás, até hoje, não fico muito descalço e prefiro ficar de meias mesmo em casa, para horror da Dani...
Foco!
Dá até pra ver, ao fundo, outras casas no bairro. Mas naquela época havia mais terrenos baldios na Cidade Universitária do que casas construídas. Era outra época mesmo, em que as crianças passavam os dias ralando joelhos e se cobrindo daquela mesma terra vermelha cheia de formigas que fez com que o Zeferino Vaz conseguisse o terreno da Unicamp por um preço de banana.
E por que dessa vez mudei a foto? Por pirraça. No pun intended.
Tenho percebido que as redes sociais viraram, para muitos, mais do que exercício de cidadania. Viraram publicidade, plataformas hipócritas (porque não parecem nunca falar às claras) de interesses pessoais bem mesquinhos. Geralmente politicamente motivadas, que se fazem na desgraça e na criação de inimigos, cada vez mais distantes e desumanizados. À esquerda, à direita, ao centro. E agora, mesmo os "niilistas", os que acham que está tudo ruim mesmo, têm prato cheio. Cada vez mais as pessoas comprometem algo de si para vociferar contra tudo e contra todos. Trampolins pra defender suas próprias agendas das maneiras mais baixas. Com notícias falsas, com uma seletividade absurda - fechando os olhos para os absurdos de seus próprios "partidos", na maior onda de comprometimento das próprias consciências que eu já vi. Os piores: os amargos. Aqueles que no dia dos professores colocam recadinhos, indiretas, sobre professor não poder ser amigo de aluno; numa cruzada contra o que certamente consideram as fofurices cretinas da vida porque afinal o mundo is burning, it is burning baby. E que devem viver num mundo bem escuro do qual eu não quero fazer parte.
Me falta uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto, mas acho que as redes sociais pioraram e amplificaram essas coisas. Porque essas pessoas fazem escola. Quando você menos percebe, só vê sangue na tela.
"Você é contra as campanhas e o ativismo online?"
Absolutamente. Eu acho que muita coisa boa pode ser feita. E tem que ser feita, aproveitando o potencial e a dispersão dos caracteres na rede. E essas pessoas de que falo são minoria - barulhenta, mas minoria. Mas me irrita (sempre me irritou) a patrulha ideológica. Que agora virou patrulha moral. Faço questão de colocar fotos de gatinhos. Não quero ficar obcecado com a revolução (ou com o apocalipse). A vida tem pequenas dádivas, sim. Poliana? Pode ser, mas é assim que eu consigo dormir de noite. E as minhas lutas, as luto do meu jeito.
Último desvio, prometo. Mas esse eu queria fazer.
Mas volto ao estilingue. Meu vô, marceneiro, filho de marceneiro, irmão de marceneiros, fazia um estilingue para cada neto que nascia. Ele sempre quis fazer uma boneca para as netas. Mas elas não vieram. Em 6 oportunidades. Mesmo décadas depois, com mais uma chance improvável, para ser avô de novo, ele teve que fazer um novo estilingue, agora pro Benjamin (mesmo que um só simbólico, sem muita funcionalidade real, porque, afinal, os tempos são outros, os olhos e a firmeza das mãos também).
Eu adorava esse estilingue, apesar de não saber usar direito. O estilingue e uma espada de madeira, que ele fez uma vez, pra minha fantasia de Peter Pan, que usei no carnaval de 1979, ou de 1980, algo por aí (ganhei um prêmio por ela!). Os dois quebraram em algum momento da história. E não sei porque não guardei de recordação. Mas o estilingue era um tesouro pra mim. Meu objeto preferido.
Já falei de um amigo meu, aqui neste blog, que veio do Piauí, certo? Bem, esse amigo uma vez ganhou do pai um estilingue de alumínio, que apoiava no antebraço com uma meia lua que parecia uma manopla, com elástico industrial (e não a borracha de pneu usado, que meu vô utilizava). Que atirava uma mamona (usávamos mamonas dos terrenos baldios) muito mais longe do que o meu estilingue de madeira - que, aliás, muitas vezes falhava, com a manona batendo numa das hastes de madeira da forquilha, voltando no dedo, que ficava ardendo de dor.
Mas o meu estilingue tinha alma. Eu sabia, mesmo naquela época.
E a foto? Acho que é a minha maneira de mostrar meu comprometimento.
(Tentarei adotar um dia da semana pra escrever aqui, seguindo a sugestão de uma querida amiga, que deu a maior força para reviver o blog. Vamos ver se dá certo nos finais de semana)
Cinco anos sem um pio e, de repente, um texto sobre ipês amarelos. Sem explicação, sem dar justificativa, "você some sem nem dar notícia?!" dizem os amigos que me dão aquela bronca-bem-humorada-mas-que-é-uma-bronca-mesmo-assim por sumir. Para esses eu costumo dar o acanhado "puxa, ultimamente está tão corrido, mas a gente combina algo sim" - resposta que mais ou menos serve aqui também. Em nenhum dos dois casos a resposta é muito satisfatória. E é meio covarde, na verdade. Sincera ma non troppo.
Em parte, sim, a vida ficou corrida. Mas na realidade acho que eu precisei dar um tempo disso aqui. Não que eu não tenha ficado com vontade de escrever, em um momento ou em outro. E ensaiei retomar esse blog algumas vezes nesse tempo todo. Mas não fazia sentido. E eu não tinha certeza se faria sentido alguma vez mais. E ainda não tenho certeza. Mas, se estou agora escrevendo o segundo post é porque talvez tenha algo ainda pra dizer, não?
Mas tergiverso. Algo pra dizer sempre tem. Aliás, o que não falta é coisa pra contar, de 2010 até agora. Vamos ver, se realmente engrenar de novo eu vou contando aos poucos alguns highlights e algumas pequenas alegrias e algumas pequenas neuroses - sempre material divertido, que dispensa a grandiosidade revolucionária dos grandes eventos para realmente importar para alguém. Mas esse "sentido" de que estou falando é, na verdade, bem egoísta. Eu sei que eu contava para os outros (e poucos outros, uma vez que pouquíssima gente lia este blog - e, agora, depois desse hiato todo, menos ainda), mas contava para os outros para que eu pudesse contar algo que eu precisava para mim mesmo. Euzinho que nunca fiz análise ou terapia.
Bom, para não matar qualquer chance de gostar de escrever aqui, uma historinha, pra não ficar só nessa auto-análise toda.
***
Esses dias foi dia das crianças. Eu gosto muito de ver os amigos de facebook (eu tinha facebook em 2010, quando parei com esse blog?) mudando as fotos de perfil. Curto todas. Mas eu mesmo nunca tinha colocado uma minha. Tenho umas fotos bonitinhas de criança, mas nunca aderi ao movimento. Aliás, esse ano foi a primeira vez que aderi a essas mudanças de perfil por alguma coisa, com algumas campanhas muito necessárias nessa época de fundamentalismos... Opa, volto a fazer rodeios!
Foco!
Enfim, mudei a foto de perfil, para uma minha esticando o elástico de um estilingue e olhando pro outro lado, morrendo de medo. E eu lembro desse dia! Devia ter uns 5, 6 anos no máximo. Usava aquele macacão que eu adorava (aliás, adorava macacões, principalmente por causa do bolso de canguru, e fiquei bem bravo quando o último que tive ficou pequeno demais pra usar e a moda tinha mudado e ninguém usava mais) e umas sandálias franciscanas que usava com meias. Sempre com meias - aliás, até hoje, não fico muito descalço e prefiro ficar de meias mesmo em casa, para horror da Dani...
Foco!
Dá até pra ver, ao fundo, outras casas no bairro. Mas naquela época havia mais terrenos baldios na Cidade Universitária do que casas construídas. Era outra época mesmo, em que as crianças passavam os dias ralando joelhos e se cobrindo daquela mesma terra vermelha cheia de formigas que fez com que o Zeferino Vaz conseguisse o terreno da Unicamp por um preço de banana.
E por que dessa vez mudei a foto? Por pirraça. No pun intended.
Tenho percebido que as redes sociais viraram, para muitos, mais do que exercício de cidadania. Viraram publicidade, plataformas hipócritas (porque não parecem nunca falar às claras) de interesses pessoais bem mesquinhos. Geralmente politicamente motivadas, que se fazem na desgraça e na criação de inimigos, cada vez mais distantes e desumanizados. À esquerda, à direita, ao centro. E agora, mesmo os "niilistas", os que acham que está tudo ruim mesmo, têm prato cheio. Cada vez mais as pessoas comprometem algo de si para vociferar contra tudo e contra todos. Trampolins pra defender suas próprias agendas das maneiras mais baixas. Com notícias falsas, com uma seletividade absurda - fechando os olhos para os absurdos de seus próprios "partidos", na maior onda de comprometimento das próprias consciências que eu já vi. Os piores: os amargos. Aqueles que no dia dos professores colocam recadinhos, indiretas, sobre professor não poder ser amigo de aluno; numa cruzada contra o que certamente consideram as fofurices cretinas da vida porque afinal o mundo is burning, it is burning baby. E que devem viver num mundo bem escuro do qual eu não quero fazer parte.
Me falta uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto, mas acho que as redes sociais pioraram e amplificaram essas coisas. Porque essas pessoas fazem escola. Quando você menos percebe, só vê sangue na tela.
"Você é contra as campanhas e o ativismo online?"
Absolutamente. Eu acho que muita coisa boa pode ser feita. E tem que ser feita, aproveitando o potencial e a dispersão dos caracteres na rede. E essas pessoas de que falo são minoria - barulhenta, mas minoria. Mas me irrita (sempre me irritou) a patrulha ideológica. Que agora virou patrulha moral. Faço questão de colocar fotos de gatinhos. Não quero ficar obcecado com a revolução (ou com o apocalipse). A vida tem pequenas dádivas, sim. Poliana? Pode ser, mas é assim que eu consigo dormir de noite. E as minhas lutas, as luto do meu jeito.
Último desvio, prometo. Mas esse eu queria fazer.
Mas volto ao estilingue. Meu vô, marceneiro, filho de marceneiro, irmão de marceneiros, fazia um estilingue para cada neto que nascia. Ele sempre quis fazer uma boneca para as netas. Mas elas não vieram. Em 6 oportunidades. Mesmo décadas depois, com mais uma chance improvável, para ser avô de novo, ele teve que fazer um novo estilingue, agora pro Benjamin (mesmo que um só simbólico, sem muita funcionalidade real, porque, afinal, os tempos são outros, os olhos e a firmeza das mãos também).
Eu adorava esse estilingue, apesar de não saber usar direito. O estilingue e uma espada de madeira, que ele fez uma vez, pra minha fantasia de Peter Pan, que usei no carnaval de 1979, ou de 1980, algo por aí (ganhei um prêmio por ela!). Os dois quebraram em algum momento da história. E não sei porque não guardei de recordação. Mas o estilingue era um tesouro pra mim. Meu objeto preferido.
Já falei de um amigo meu, aqui neste blog, que veio do Piauí, certo? Bem, esse amigo uma vez ganhou do pai um estilingue de alumínio, que apoiava no antebraço com uma meia lua que parecia uma manopla, com elástico industrial (e não a borracha de pneu usado, que meu vô utilizava). Que atirava uma mamona (usávamos mamonas dos terrenos baldios) muito mais longe do que o meu estilingue de madeira - que, aliás, muitas vezes falhava, com a manona batendo numa das hastes de madeira da forquilha, voltando no dedo, que ficava ardendo de dor.
Mas o meu estilingue tinha alma. Eu sabia, mesmo naquela época.
E a foto? Acho que é a minha maneira de mostrar meu comprometimento.
(Tentarei adotar um dia da semana pra escrever aqui, seguindo a sugestão de uma querida amiga, que deu a maior força para reviver o blog. Vamos ver se dá certo nos finais de semana)
quarta-feira, outubro 14, 2015
Ipê Amarelo
Hoje eu pretendia ficar em casa, trabalhando sossegado na minha bagunça confortável. Mas fui avisado que tinha que ir assinar um documento urgente.
Bom, fazer o quê, parte do processo de patrimonialização. Vamos lá. Sapato, meia, calça (mas que calor, não dá pra ir de bermuda?), camiseta (aqui eu bato o pé).
On the road.
No rádio do carro, o primeiro cd de discotecagem feito pela Dani, que ela tinha colocado uns dias atrás no tocador. Passando pela avenida Norte Sul, o trânsito espantosamente tranquilo, eu dirigindo devagarinho, começa a tocar Mad World, do Red Paintings, banda que a Dani gosta bastante.
E eu sozinho na avenida, numa manhã de céu azul sem nuvens, indo sem pressa, sem outros carros em volta, começa um vento muito forte, uma lufada, que sacode todos os vários ipês que ladeiam o asfalto. E aí uma chuva intensa de amarelo. E então fiquei pensando no momento bonito, totalmente banal, mas também extremamente significativo. Pensei na coincidência dessa música, com o cenário de Kurosawa em Campinas, como combinava na minha cabeça.
Não necessariamente feliz. Mais a frente, na verdade, uma cena triste. Mas ainda sim, um momento bonito.
https://www.youtube.com/watch?v=UkH9aZWv5Zc
E me lembrei do que disse o saudoso Rubem Alves, que nos deixou ano passado e que gostava de ipês:
"O mundo é muito bonito! Gostaria de ficar por aqui... Escrever é meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão. Quem sabe se transformarão em árvores! Torço para que sejam ipês amarelos..."
Também descobri essa:
"E quem é Rubem Alves? Um menininho respondeu: 'O Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos...' A resposta do menininho me deu grande felicidade. Ele sabia das coisas. As pessoas são aquilo que amam".
Bom, fazer o quê, parte do processo de patrimonialização. Vamos lá. Sapato, meia, calça (mas que calor, não dá pra ir de bermuda?), camiseta (aqui eu bato o pé).
On the road.
No rádio do carro, o primeiro cd de discotecagem feito pela Dani, que ela tinha colocado uns dias atrás no tocador. Passando pela avenida Norte Sul, o trânsito espantosamente tranquilo, eu dirigindo devagarinho, começa a tocar Mad World, do Red Paintings, banda que a Dani gosta bastante.
E eu sozinho na avenida, numa manhã de céu azul sem nuvens, indo sem pressa, sem outros carros em volta, começa um vento muito forte, uma lufada, que sacode todos os vários ipês que ladeiam o asfalto. E aí uma chuva intensa de amarelo. E então fiquei pensando no momento bonito, totalmente banal, mas também extremamente significativo. Pensei na coincidência dessa música, com o cenário de Kurosawa em Campinas, como combinava na minha cabeça.
Não necessariamente feliz. Mais a frente, na verdade, uma cena triste. Mas ainda sim, um momento bonito.
https://www.youtube.com/watch?v=UkH9aZWv5Zc
E me lembrei do que disse o saudoso Rubem Alves, que nos deixou ano passado e que gostava de ipês:
"O mundo é muito bonito! Gostaria de ficar por aqui... Escrever é meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão. Quem sabe se transformarão em árvores! Torço para que sejam ipês amarelos..."
Também descobri essa:
"E quem é Rubem Alves? Um menininho respondeu: 'O Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos...' A resposta do menininho me deu grande felicidade. Ele sabia das coisas. As pessoas são aquilo que amam".
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