sábado, agosto 25, 2007

Requiem



A propósito da lavanderia, coloco uma fotinho da rua em que a lavanderia, singelamente batizada "My-Fair Laundry", está situada.
Meu bairro tem um centrinho, com uma high road com algum comércio, como uma verdadeira cidade pequena. Um banco, um starbucks, uma boots, um tesco, um açougue, uma floricultura, um empório, um pub, uma deli, uma igreja com seu próprio cemitério, um jornaleiro, uma GAP, umas outras lojinhas de roupas, alguns restaurantes e cafés... essas amenidades indispensáveis da vida moderna dos abastados.
Mas pertinho de casa mesmo, há um comércio mais modesto. Trata-se de uma ruazinha, perpendicular à minha, munida com uma vendinha na esquina - a Corner Shop, que vende desde cigarro e Jack Daniels até uma seleção de comidas rápidas para os moradores locais que estão com pressa ou preguiça de ir ao supermercado. Mas existe também uma farmácia de manipulação, um jornaleiro, um salão de beleza, uma imobiliária, um alfaiate, um café que explora o fato de ser pertinho da Abbey Road e que tem duas mesinhas na calçada, a lavanderia do outro lado da rua e algumas lojas vazias (uma loja de brinquedos que ainda estava aberta até mês passado, um escritório de representação que fechou no começo do ano, uma barbearia que nunca vi funcionando e duas outras que nem sei o que eram; sinto como se estivesse no olho do furacão, testemunha da morte de uma era e o amanhecer de um novo mundo). Ah, e abriu esta semana uma mini academia de ginástica.
A lavanderia é o único comércio que eu imagino que não tem perigo de fechar, já que não existe - ainda - nenhuma grande corporação de lavadores de roupa: venha lavar sua roupa enquanto toma um mochaccino descafeinado com creme e lê um livro da penguin (os clássicos da literatura em papel jornal e capa mole cor pastel, por x pounds e 99 pence) no sofazinho de couro fagocitante!
De resto, bem, talvez esteja contemplando o canto da banshee do pequeno comércio tradicional londrino (talvez o salão de beleza também ainda tenha lá sua clientela, ao menos no meu bairro).
No Brasil temos algo parecido, em que teatros e cinemas antigos se metamorfoseiam na calada da noite e - plim - de manhã são templos pentecostais ou bingos; em que as livrarias pequenas não conseguem competir com redes francesas de siglas que ninguém sabe o que significam e que vendem de tudo (inclusive livros).
Aqui esses espaços urbanos se transformam em supermercados - Tesco e Sainsbury's, que proliferam como cogumelos na chuva. Ou pior, viram possibilidades imobiliárias, estéreis e impessoais, completamente despidas de propósito que não o do lucro maior na compra e venda ou aluguel.
Existem campanhas para manter os mercados de rua e a lojinha da esquina vivos. Afinal, a Inglaterra ainda é um país conservador e gosta de sua tradição: mobile, ok, but don't mess with my fish and chips!
Mas essas vozes geralmente são abafadas pelo trânsito e morrem ignoradas, com ouvidos surdos e indiferentes e o peso da lógica da vida selvagem highlander (ou seja, "there can be only one!" Que, afinal é a premissa por trás de programas como Big Brother, Survivor, American Idol, Supernova, America's Next Top Model, Fama...).
O lugar onde aconteceu a festa em que perdi minhas calças, dois posts atrás, é um desses dinossauros moribundos, timidamente tentando comer suas folhagens, passar despercebido e esquecer que o fim está próximo - e vindo num grande cometa destruidor. Com trademark e copyright, claro.
A festa foi uma espécie de ritual fúnebre para um dos recantos bacanas de Camden Town, um lugar em que bandas tocavam e artistas expunham fotografias, quadros, performances. As pessoas foram lá beber e prestar sua última homenagem. Vai ser demolido e virar um supermercado.
Não acho difícil que o maravilhoso mercado de Camden - centenas de lojinhas que vendem as mais bizarras e esquisitas coisas, num labirinto de corredores e ruas, de cheiros e cores mais variadas - dará lugar a um condomínio ou um shopping center em um futuro não muito distante.
Azar, queridos e queridas, é a marcha inexorável da civilização, a pedra lascada que deu lugar ao cobre que deu lugar ao telégrafo que deu lugar ao trem que deu lugar à psicanálise que deu lugar ao mall que deu lugar a um espaço de ninguém, protótipo acabado e inevitável do panóptico foucaultiano. O processo começou (e nem é o primeiro estágio, como atestam as redes de sanduíches de inspiração taylorista que colorem a paisagem de qualquer recanto urbano) e corre com dentes e engrenagens de plástico (aço é démodé) - e se parece com um pesadelo marxista transviado e distorcido. Marx on acid.
Claro que o gado não é passivo e o espaço vira território, mesmo que seja de guerra - ou guerrilha. Ou você acha que os carros queimados nas cités parisienses são comemorações juninas ligeiramente mais empolgadas?
Mas a ciência deste fato não melhora a situação, melhora?
É notável como, numa cidade tão preocupada em lembrar sua história, as coisas se tornam cada vez mais pasteurizadas.
Vou em zoológicos e vejo um gorila ameaçado de extinção, uma foto de um demônio da tazmânia que já não mais caminha nas terras de Nosso Senhor, deste nosso pequeno, lotado e esvairido planeta azul. SOLD OUT. FULL. Sorry, try the moon, or perhaps that red planet over there.
No museu, vasos helênicos e painéis babilônicos e no canto, reservado num espaço entre o modernismo e o pós-whatever, uma pipa colorida e a estátua de um sorridente, bigodudo e grisalho barbeiro, de tesoura em punho e trajado com um avental branco, com a legenda no chão "exemplos da vida cotidiana - homo sapiens - final do século XX AD".



Ah, a título de esclarecimento sobre o custo da roupa lavada: 4 libras a máquina menor, 5 a maior. A secadora varia... depende de quanto tempo você quer deixar... umas duas libras é um valor razoável.

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