Eu passei os últimos dois dias no principal hospital de Atendimento de Urgência e Emergência do SUS em Campinas, o famoso "Dr. Mário Gatti". Quem morou tempo suficiente em Campinas já ouviu alguma coisa sobre este hospital - e arrisco a dizer que provavelmente não foi algo bacana. E, de fato, o clima lá é bem pesado (em que hospital não seria?). Todos os acidentes, todos os abusos, das pessoas mais humildes da urbe e também de seus arredores, dos que não têm o luxo dos planos de saúde imorais. Mas dois dias lá me fizeram colorir um pouco meus próprios preconceitos.
Não, não fui eu que fiquei internado, apesar de ter passado horas e horas esperando naqueles corredores. Minha mãe foi atropelada por uma moto e foi levada para o Mário Gatti, por ter sido resgatada pelo SAMU, que leva todos os casos para lá. E foi um susto. Enorme. Minha mãe se machucou bastante. Quebrou algumas costelas e uma clavícula. Mas está bem, já preocupada no serviço que vai ficar atrasado. E, por conta disso, acabei ficando, junto com meu irmão e minha cunhada, bastante tempo no hospital.
E as histórias que vi e que ouvi...
Lá testemunhei, em meio ao caos e ao stress do ponto de chegada das ambulâncias do SUS em Campinas, gentilezas perseverantes, muitos sorrisos. Dei risada com os cirurgiões da alegria, que rondavam os corredores brincando com os pacientes cabisbaixos e os parentes preocupados. Mas também vi muita dureza e sofrimento. Lá ouvi muitas tosses, gemidos, angústias, gritos ocasionais, bem como sangue e outros fluidos e detritos suspeitos. Vi chegarem, algemados, vários presidiários com máscaras de proteção, para fazer raios-x (todos sinais de tuberculose?). Vi chegar uma ambulância fechada com cadeado e escoltada por policiais armados para deixar alguém ferido que certamente também era um suspeito de algo. Vi, sobretudo, os dramas das pessoas. Quer dizer, vi pedaços de dramas, alguns mais doídos do que outros.
Vi o seu Geraldo, que é conhecido por todos no PS, e que tanto no primeiro como no segundo dia em que estive lá quis se internar para tomar café e comer um pão. Conheci dona Teresinha, que estava com seu marido, que havia ficado cego recentemente. Vi uma mãe e uma filha, aflitas com a suspeita de que o pai e marido que estava internado, pudesse ter Alzheimer.
E meu coração apertou quando conheci seu Jesus, um senhor de 93 anos, sem família, morador de um abrigo da cidade, e que estava com sua sonda abdominal (que já tinha feito aniversário de 1 mês, segundo sua acompanhante, uma assistente do abrigo) solta, tendo se molhado com urina e sangue: esperou paciente que o pessoal trocasse a sonda e fizessem alguns exames. Vi a hora em que a cuidadora lhe disse que iria sair, por uns 15 minutos, para pegar roupas secas que o motorista do abrigo havia trazido na recepção. Sofri, quando seu Jesus, num suspiro, com um fiapo de voz, embargada e quase inaudível, chorou e pediu que ela não o abandonasse. "Claro que não vou fazer isso, seu Jesus! Não tenho coragem de fazer isso com o senhor. O senhor é meu querido" - foi a resposta. Mas vi como seu Jesus, sentado em sua cadeira de rodas e segurando uma bolsinha preta, continuava com medo, não acreditando na moça, olhando suplicante com olhos embaçados, não só de emoção, mas também de alguma catarata, que lhe apagava junto o corpo.
Não devia ser um sentimento infundado, o do abandono. Enquanto eu continuava esperando notícias sobre minha mãe e a ambulância bonita para levá-la dali, depois de horas naquele caldeirão de tensão, finalmente chorei.
E de fato, pensei, um hospital não é bem um lugar de sofrimento, ou mesmo de morte. É, sobretudo, um lugar de espera. Um lugar em que você pensa sobre o tempo e na deterioração do passar do tempo. Quando você vê sua mãe, seu pai, que deveriam te proteger sempre e serem seus heróis, em toda sua surpreendente fragilidade.
E então, paradoxalmente, com toda essa espera, você vê fragmentos de dramas, pequenas porções de alguma torcida, de um pouco de alívio, de muito pesar. Ali não cabe a revolta. Contra o quê? São histórias que, na maior parte das vezes, você não sabe como começaram, nem como irão terminar. Mas ao mesmo tempo, esperando, sempre esperando, é possível, e inevitável, apreender um pouco mais dessas vidas renitentes, e também resilientes.
Pelo menos algumas vezes.
Numa conversa com aquela senhora que sentou do seu lado, ouvindo trechos de alguma instrução dada por uma enfermeira, por uma médica, por um assistente social. Ou mesmo observando aquele andar a esmo, lento pelo peso do tempo e da espera (sempre ela), sem destino, daqueles que vagam, quase inconscientes, pelos corredores, carregando suas sondas, trajando apenas aventais verde-claros. Sempre existe pelo menos um desses, as quase almas penadas de hospital. Esses que são quase doloridos de olhar.
E com toda essa torrente de vidas assustadas, renovada todos os dias, é incrível que aqueles enfermeiros e enfermeiras, médicas e médicos, assistentes sociais, faxineiras e faxineiros, seguranças, responsáveis pela manutenção, consigam ser corteses, te tratar com humanidade e solidariedade. Fazer o possível, entre uma urgência e outra, para te ajudar um pouco - em alguns casos te dando seus telefones pessoais, já que estavam no fim do turno e se colocavam a disposição se fosse preciso!
Na viagem pela ambulância (a primeira vez que fiz uma, consciente) conheci mais dessas pessoas especiais. O motorista, que disse que ganhava muito mais como cicerone de um famoso cantor sertanejo, me assegurou que não se arrepende de ter trocado sua carreira antiga e virado socorrista do SAMU, tantos anos atrás agora. Ganhar menos, trabalhar jornadas extenuantes, flertar com úlceras nervosas, traçar estratégias para atender um chamado numa favela ou num presídio (pois disso depende sua integridade física)... mas aprendeu o que é a vida.
E fiz questão de agradecer todas as pessoas que nos ajudaram nesses dias. É o mínimo a se fazer, para essas que são as pessoas mais próximas da prática altruísta que eu conheço. E meu respeito pelo SUS, com os problemas que existem (e, se existem, não são por causa dessas pessoas que trabalham no dia a dia do hospital), apenas aumentou. O que acontece ali é de fato tirar leite de pedra. E é de tirar o chapéu, para aprender a ser mais grato, menos cínico.
quinta-feira, março 10, 2016
sábado, março 05, 2016
A vida felina
Ontem se foi o gatinho Moustache. Uma das mais boazinhas criaturas que já existiu. Como eu falei num post anterior, quando ele começou a ficar ruinzinho, ele apanhava de todo mundo: do irmão, da mãe, das cachorras que minha mãe tinha (essa vez que elas resolveram pegá-lo o coitado quase foi desta pra melhor)... Mas nunca revidava. Apenas olhava com uma cara de "puxa, que foi que eu fiz?"...
Ele estava sofrendo bastante nas últimas semanas, mas não reclamou. Suportou tudo de uma maneira que nos devia envergonhar. Envergonhar pelo simples fato de mostrar um caráter (sim, gatos têm isso) exemplar. De mostrar o que importa na vida, apreciá-la de verdade. Eu ia visitar na clínica onde ele ficava internado quando piorava mais e saia com o coração apertado. Ele melhorava um pouco, nos dava esperança, parecendo querer nos poupar do sofrimento de vê-lo assim, e depois voltava a ficar ruim, sem forças.
Claro, nem tudo foi sofrimento na vida do Moustache. Ele adorava subir no colo e receber carinho da minha prima. E de mim também. Podia ficar semanas vem vê-lo, mas ele nunca me fez sentir culpado por isso, como poderia, por eu ser tão relapso. Tinha uma amor incondicional, sem mesquinharias ou cobranças. E adorava subir no colo e ficar esfregando o nariz na minha barriga. Acho que levou uma boa vida, feliz.
No final o alento foi que morreu em casa, e não internado, como ficou por tanto tempo. Fiquei triste, mas aliviado por ele poder descansar de uma boa maneira.
O dia foi blue. Mas hoje também, coincidentemente, fui ver com a Dani uma ninhada de gatinhos que minha cunhada pensa em adotar. São filhinhos de uma gata que dois gatófilos muito generosos resgataram, grávida, da rua. Aí aqueles barulhinhos de filhotes, a brincadeira de subir um em cima do outro, fizeram a mim e a Dani sorrirmos um pouco. Poucas coisas são tão bonitas quanto o bem estar que um bichinho pode dar.
Ele estava sofrendo bastante nas últimas semanas, mas não reclamou. Suportou tudo de uma maneira que nos devia envergonhar. Envergonhar pelo simples fato de mostrar um caráter (sim, gatos têm isso) exemplar. De mostrar o que importa na vida, apreciá-la de verdade. Eu ia visitar na clínica onde ele ficava internado quando piorava mais e saia com o coração apertado. Ele melhorava um pouco, nos dava esperança, parecendo querer nos poupar do sofrimento de vê-lo assim, e depois voltava a ficar ruim, sem forças.
Claro, nem tudo foi sofrimento na vida do Moustache. Ele adorava subir no colo e receber carinho da minha prima. E de mim também. Podia ficar semanas vem vê-lo, mas ele nunca me fez sentir culpado por isso, como poderia, por eu ser tão relapso. Tinha uma amor incondicional, sem mesquinharias ou cobranças. E adorava subir no colo e ficar esfregando o nariz na minha barriga. Acho que levou uma boa vida, feliz.
No final o alento foi que morreu em casa, e não internado, como ficou por tanto tempo. Fiquei triste, mas aliviado por ele poder descansar de uma boa maneira.
O dia foi blue. Mas hoje também, coincidentemente, fui ver com a Dani uma ninhada de gatinhos que minha cunhada pensa em adotar. São filhinhos de uma gata que dois gatófilos muito generosos resgataram, grávida, da rua. Aí aqueles barulhinhos de filhotes, a brincadeira de subir um em cima do outro, fizeram a mim e a Dani sorrirmos um pouco. Poucas coisas são tão bonitas quanto o bem estar que um bichinho pode dar.
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