sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Das belezas da universidade pública

Não contei muito do que aconteceu durante o hiato de 5 anos desse blog. Mas tenho planos de aos poucos fazer isso.

Uma das coisas mais bacanas que aconteceu foi que, daquele momento de estudante em Belém, durante uma RBA (Reunião Brasileira de Antropologia), já doutor, mas ainda desempregado, para cá, eu virei, justamente, professor na universidade que me formou (o hiato mais ou menos coincidiu com um período estranho, límbico, de não-lugar, quando você já se doutorou, não é mais estudante, mas também não passou em nenhum concurso... momento que as pessoas acabam preenchendo cada vez mais com bicos, pós-doutorados e muita angústia sobre o que fazer da vida). Professor, agora, contratado de fato, mas por quatro anos, naquele esquema emocionante de posdoc.

E já tenho várias histórias pra contar sobre essa aventura que é dar aula (e lá se vão quase sete anos desde que comecei a dar aula, cinco desses realmente pra valer - uma diferente da outra, completamente imprevisíveis). Mas ontem lembrei, dando risada, de um dia em específico. Creio que era 2013, ou então 2012, e eu dava uma disciplina na graduação em Ciências Sociais. Talvez Antropologia III, ou Antropologia IV, obrigatórias. Turma lotada, sempre rolam seminários bacanas por parte dos alunos (gosto de deixar como atividade opcional, não é todo mundo que gosta de dar seminário - mas quando é bacana, é muito bacana!).

Estávamos discutindo um livro da Maria Elvira, Nas Redes do Sexo, que é sobre o mercado pornográfico brasileiro (livrão, aliás). Eu sempre gostei de dar liberdade para os alunos prepararem os seminários - a criatividade é geralmente grande e sempre veem boas surpresas. Bem, no seminário anterior, que era sobre Tristes Trópicos, o grupo tinha passado um video com uma entrevista do Lévi-Strauss falando sobre o Brasil, e foi super legal (acho que foi nesse ano também que um grupo passou um video do Antonio Cândido falando sobre o caipira, bem como umas fotos de quadros do Almeida Júnior - o seminário, claro, era do lindo Parceiros do Rio Bonito). Pois bem, o grupo, talvez um pouco provocativamente, pra ver até onde ia a boa vontade do professor, resolveu passar em sala um video pornô feminista. A ideia era discutir a possibilidade de pornografia que não reproduzisse estruturas de dominação masculina. E acho que tivemos mesmo um debate fantástico sobre agência, empoderamento, poder, sexualidade e gênero.

Mas enquanto eu via aqueles corpos todos pelados e mandando ver, eu não conseguia deixar de pensar que em alguns dias a direção iria me dar uma bronca, depois de ter sido procurada por algum pai ou mãe chocados com a ementa dos cursos na universidade. Não aconteceu nada, claro. Eu subestimava a beleza que é uma universidade pública livre e contestadora. Pouco tempo passou desde então, mas o mundo mudou bastante, ficou mais histérico e paranóico. E eu fico pensando até quando ainda vai ser possível ter aulas assim.

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Rapidinhas mais uma vez

Pequeno momento enxaqueca:

Me irritam os intelectuais poetas de facebook que fazem haikai de aforismos pseudo-cultos. Haja paciência...

Pequeno momento deslumbre:

Hoje peguei um Agatha Christie (O assassinato no campo de golfe) que alguém deixou pra doar, junto com outros livros, no prédio da pós. Vou ler a história no que me resta de férias e depois devolver ao mundo, para outras leituras por aí. Que legal seria uma biblioteca libertária e anônima se essa onda pegasse...

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

A burocracia do eterno retorno e a kafkanidade das soluções insolúveis

Estou suspeitando que a placa do meu carro foi clonada. Na verdade, eu só descobri que isso era possível esses dias (ingenuidade minha, já que há séculos nos especializamos em copiar as coisas, e hoje em dia pirateiam até água mineral).

Há pouco mais de uma semana eu tinha recebido uma multa, em um lugar que nunca vou dirigindo, "mas ok, de repente eu esqueci que fui lá; nem é tão longe de casa". O fato da autuação chegar só muito tempo depois da infração contribui para a dúvida. Mas então chegou uma outra multa, como se estivesse em Sorocaba - lugar em que não vou há uns 10 anos (a última vez foi pra ver um show dos Muzzarelas, num bar tão decrépito que o teto tinha caído em um ponto, dando pra gente ver o céu, que estava estrelado nesse dia... mas o show foi legal).

Então fui procurar como recorrer a multas em locais em que não estivemos e vi que são até bem comuns, as clonagens de carros - o nome certo é "dublê", como me informou uma simpática-mas-impossibilitada-de-me-ajudar moça no Detran no dia seguinte.

Angustiado, acordei cedinho, em pleno sábado, e fui no Poupa-tempo do centro. 7 da manhã. A cidade vazia, mas já bastante gente pegando fila na repartição. Situação realmente dantesca.

Moça no guichê, com sono, preocupada com a avaliação do serviço que iria receber depois do atendimento (você dá uma nota de 0 a 5 ao final - cinco é uma tecla verde sorrindo; zero, uma vermelha e triste):

____ Sinto muito, não há o que fazer aqui. O senhor tem que ir até o outro Poupa-Tempo, no shopping tal, onde tem um Detran também. Pode dar uma nota para o atendimento?

Pois é, aqui existe um shopping, já perto de pegar o caminho pra São Paulo, que tem um Poupa-Tempo, bem como um Detran. E uma polícia federal, aliás, onde expedem até passaportes. Acho isso um tanto quanto bizarro... meio como esses condomínios que estão surgindo, com padaria e supermercado dentro - micro urbes dentro das cidades. Você compra meias na loja de departamento, vê um filme que concorre ao Oscar, come um pão de queijo na praça de alimentação e aproveita e renova seu RG descascando.

Toca ir ao tal shopping, na puta-que-o-pariu-onde-Judas-perdeu-as-botas. Bom, na verdade o caminho, apesar de ser até bem longinho, foi rápido - a cidade ainda estava preguiçosa.

Shopping às escuras, mas Poupa-Tempo já bem movimentado também. Lá, o moço da parte do trânsito e veículos, já suficientemente alerta às 8 da manhã para cravar sorrindo com vitalidade e pronto agouro (não sem uma dose de crueldade, ou ao menos falta de sensibilidade):

____ Ih, é bem comum clonarem carros. Você pode até tentar pedir pra trocar de placa, mas o pessoal fica tão desesperado recebendo multa que prefere vender mesmo.

Os ombros de quem ainda está pagando o carro caem 20 metros em direção ao chão.

____ Mas o carro não tem um ano ainda... e isso não é passar o problema pra outra pessoa?

Sorriso mais simpático e agora também bastante triste, provavelmente pensando "assim é a vida, não sabia?"...

____Pois é... Não tem solução, não. Melhor ir no Detran lá em cima - apontou o dedo pro teto - e ver melhor isso aí.

Toca ir pro Detran, onde realmente daria pra recorrer de alguma coisa, dois andares acima (não sem antes tomar um expresso num quiosque de lanches lotado - pelo menos para isso serve estar num shopping - para afogar a vontade de largar o carro ali mesmo e nunca mais dirigir). Lá, a mencionada moça simpática-mas-de-mãos-atadas me disse, com um solidário desânimo, que eu podia recorrer às multas, mas que seria difícil ganhar.

____ Se é melhor pagar? A gente não pode dar instrução nesses casos, senhor. Mas se eu fosse o senhor eu pagava, por via das dúvidas. Se ganhar o recurso pode pedir restituição... (dando a entender que eu teria mais problemas se resolvesse exercer meu direito de não pagar pelo que eu não fiz) Mas aqui só dá pra recorrer da multa recebida em Campinas. A de Sorocaba tem que ir lá ou mandar por correio (mas pra multar o sistema intermunicipal integrado funciona muito bem, né?).

Uma calma sinistra, própria dos condenados, abateu-se sobre a minha pessoa. "Mas que porra de piada é essa?" - pensei, mas não falei. De que serviria? Ao invés, murmurei alguma praga contra ninguém e contra todos.

____ Mas o que eu posso fazer então?

O segundo sorriso triste e simpático do dia:

____ Tem que esperar chegar mais uma multa, pelo menos, para poder entrar com algum processo na delegacia.

A calma sinistra definitivamente virou resignação. O que foi bom, acho - sobretudo em épocas de gastrite.

Quando já convencido de que devia voltar pra cama e encerrar o dia que mal tinha começado, a moça tentou fazer o que eu apenas posso acreditar que foi uma tentativa de me animar, já que eu tive a impressão de que ela estava verdadeiramente compadecida de mim:

____ Mas o senhor até que tem sorte! Geralmente, em caso de carro dublê, chegam várias multas por semana!