Ainda que de vez em quando goste tanto de um livro que o leia de novo, isso não acontece com muita frequência, claro. E nunca tinha lido duas vezes um livro em uma semana. Mas esse livro, de que quero falar hoje, é especial.
Até menos de um mês atrás nem sequer o conhecia ou tinha ouvido falar, assim como ao seu autor, Jim Dogde – desses escritores americanos que cresceram nos 60 e que ainda teimam em impingir no mundo alguma cor e alguma esperança.
Ganhei o livro da minha querida amiga Karina, que o deu como
combo junto a outro (o Flush da Virginia Woolf) e o recomendou muito, me
assegurando que seria uma leitura “de uma sentada”: seria rápida e valeria a
pena. Prometi que leria e fui enfrentar a vida nos dias seguintes.
E então passei dias bem complicados na semana passada. Muito
trabalho, sim, mas também tive aquela tristeza meio irresistível de quando nos
decepcionamos com o mundo. Então a Karina me disse novamente para ler o livro,
que eu iria gostar.
E assim, um dia depois, numa manhã de domingo preguiçosa,
tendo dormido mais do que o comum para fazer as pazes com a minha paixão pelas
coisas, eu li. Na cama, deitado – e não sentado como recomendado. Mas valeu a
pena mesmo assim.
Ah, esqueço de dizer qual é o livro, né? O livro chama Fup e
conta a história de uma patinha meio desengonçada, bastante geniosa e que ainda
não sabe voar; mas também de Miúdo, um moço grande fazedor de cercas e seu avô
Jake, fazedor de um whiskey especial e de impropérios torrenciais. Ambos moradores
de um desses cantinhos perdidos no mato americano, esquecidos pelo governo
(aparentemente) e por Deus (talvez menos aparentemente). Pessoas simples
que vivem aventuras que nunca chegariam a inspirar ou assombrar mais alguém não fosse a imaginação de algum escritor preocupado com as
coisas pequenas.
A história é singela, como são as personagens, e como é a
escrita. Ao final do livro a gente não pode não ter a impressão de que há uma
mensagem muito importante sendo contada, mas de uma maneira tão simples que
tudo o que aparece como significativo o é de forma franca e lindamente aberta, resistindo
àquelas interpretações corretas e autorizadas. E acho que é isso mesmo o que o Jim
Dodge gostaria, deixando o desfecho propositadamente mais fantástico, ao menos
até que ficasse novamente mais claro, “em direção a alguma nova coerência” (p.
89).
E essa humildade e essa escrita despretensiosa cativam desde
o primeiro momento. A simplicidade da vida de vovô Jake e Miúdo, personagens
apaixonantes, nos chama atenção para a beleza da quietude, da possibilidade do
escutar-se. E escutar também outras coisas.
Como todas as pessoas com a vida simples, elas percebem mais
claramente o relacionamento que têm com as coisas, com os animais sobretudo – é
assim que podemos entender a relação com o porco do mato
Cerra-Dentes, apenas aparentemente o inimigo, destruidor das cercas feitas por
Miúdo e matador do cão Patrão. Não surpreendentemente, Cerra-Dentes é intrépido e
silencioso e, assim, tão imortal como o quase centenário Jake. Mas é sobretudo com Fup – essa patinha tão incrível, que aprende a voar renascendo,
quando Miúdo realmente passa a ouvir – que podemos acompanhar esse diálogo com a natureza. Há, ao longo da narrativa, uma espécie de
tensão vital vinda dessa relação, revelada na advertência do índio Sete Luas, amigo silencioso de
Jake, que por “reverência ou desconfiança da linguagem” (p. 74), sabiamente
lembra que tudo anseia por ser selvagem.
Aprendemos que podemos ouvir, mas que não precisamos explicar
tudo. Aliás, talvez as explicações sejam enganadoras. Será que Fup era uma boa
farejadora, quando saía com Miúdo nas expedições de domingo? É o vovô Jake, com
a experiência que apenas a paciência da imortalidade confere a alguém, que
lembra que “não havia necessidade de provar nada, que a maior parte das coisas
fala por si mesma, mas que também não devia presumir que todos os seus
raciocínios fossem necessariamente corretos. As razões das coisas, advertiu
vovô, eram complicadas” (p. 67).
E talvez nos baste perceber que nos apressamos nas nossas
conclusões e nos nossos julgamentos. É o mesmo Jake que pondera se, na verdade,
Cerra-Dentes não estava, como inicialmente pensaram, de fato tentando matar Fup, naquele dia em que Miúdo a
encontrou encolhida num buraco de cerca cheio de lama. Mas tentando salvá-la –
assim como ela tentou poupar o porco, na mira da espingarda de Miúdo. Que
seriam das nossas ações e nossas escolhas então? Que tipo de voo, que tipo de
liberdade alcançaríamos, mesmo na realização da morte?
É a narrativa de uma linda história que pode se atrasar um
pouco – porque se atrasando, como Fup fazia com Miúdo em suas rondas caçadoras,
talvez boas coisas viessem e um porco do mato vivesse. Como seria bom também pausar de vez em quando. Como vovô Jake depois de se acidentar tentando ensinar Fup a voar: “Sentia-se
fatigado. Tinha uma necessidade enorme de descansar. Andava levando porradas
violentas ultimamente e precisava pensar no assunto, entender o que, com os
diabos, andava acontecendo. Havia alguma coisa, isso era certo. Mas também
tinha certeza de que provavelmente jamais entenderia o que era, e isso
contribuía fortemente para que se sentisse exausto. Era um quebra-cabeça em que
nem todas as peças cabiam. Sabia que era melhor acostumar-se com isso, se fosse
levar a sério esse negócio de imortalidade” (pp. 84-85).
Ler (e reler) Fup, nesses dias, me fez pensar um pouco sobre
essas pausas, esses mistérios, para escutar coisas. E pensar na beleza não da vida como deveria.
Nem, tampouco, da vida como queremos – talvez o grande engano. Mas da vida como
poderia.
As citações correspondem à edição em português de Fup, de
Jim Dodge, publicado pela José Olympio em 2006 e traduzido por Melanie
Laterman.
O maravilhoso desenho da Fup é da querida Karina Kuschnir,
antropóloga e artista, minha amiga – que já tinha me desenhado uma Fup
estatelada no chão e que agora fez mais novas versões para ilustrar este post
tão feliz e tão importante pra mim.