sexta-feira, novembro 23, 2018

Sobre A Escrita e a Vida, de Jorge Semprun


Tanto que eu tive que parar para dormir. Um sono de morte, irresistível, até um tanto assustador. Que eu pensei que podia não acordar mais. Juro mesmo.

Mas é também que li resfriado. Não aquele que derruba completamente, mas que deixa o mundo à volta mais lento, sabe?

O suficiente pra se esforçar um pouco mais, cansar um tanto mais pra lá.

Aquele tantinho que faz transbordar. Lia A escrita ou a vida, e desde a primeira página percebi que o mínimo que podia fazer por ele era prestar muita atenção às palavras. Tentar ouvir, que é sinônimo de entender profundamente algo que o próprio autor duvidava ser possível. “Estátua de sal e de desesperança da memória”.

Semprún é daquela geração que descobriu o peso do testemunho. Geração que se vai, definitivamente. Como se vai o choque do horror que não deveria nunca deixar de nos atormentar. Deu no que deu, planeta em ebulição. Em que pior que esquecermos é duvidarmos da lembrança.

Se demorou a ele décadas para falar do horror e da sorte de ter sobrevivido, depois de sido atravessado pela morte, quando os seus semelhantes, seus fraternos comungados na dor, “iam embora pela chaminé”, levando consigo toda a vida, até dos pássaros que abandonaram a floresta enjoados com o cheiro da fumaça. Se é evidente que cada linha foi um desafio. Se é tanta tentativa de compreender que se sente angústia... Então o mínimo que podia fazer era também brigar com a linguagem junto. Suar um pouco.

A angústia de viver, mesclada com a vida irresoluta de sobreviver ao olhar de ódio, quando via as miradas vazias, de morte, de seus companheiros. De seu professor, Halbwachs, esvaindo em seus braços, apenas um pouco menos fracos - de Sorbonne, restou, ao final, com um pouco de dignidade, Baudelaire recordado à esmo. Do judeu de Budapeste que mesmo livre continuava a morrer, recitando a oração dos mortos. Tudo isso, descobriu Semprún, para ser contado, para ser memória que impacte, precisa ser elaborado com cuidado, com prosa, poesia e ficção. Para ser irresoluta e inelutavelmente real. E isso cansa tanto que demorou cinquenta anos para tomar forma.

Que faz ler de arroubo. A única maneira possível, sentindo ternura, tristeza, amor, assombro. Parando só para dormir a exaustão de buscar entender como a vida continua mesmo sem ter conhecido o Mal absoluto como ele.

Li uma edição da biblioteca, com suas próprias marcas e memórias plantadas, formando um enigma que nunca vai se reconstituir, mas que abre frestas construídas em cima de outras janelas descontínuas. Aprendi que aquela aluna, que uma pesquisa me mostra ser hoje professora no Rio, leu esse mesmo amontoado de páginas em algum momento no final da década de 1990. Pouco depois do amontoado deixar de existir em culpa e silêncio e tomar a forma de alerta. Uma história de acerto de contas, como a de Pepetela, a de André Gorz.

Descobri que foi um livro comprado com dinheiro de uma agência de pesquisa, que foi doado em outubro de 2000 pela antiga aluna, a futura professora, com uma letra de mão redonda, quase infantil, e que pela marginália (a lápis, marca de alguém que pensa na memória e no respeito, e que confia no leitor anônimo), mostrava estar interessada na escrita da morte e na preocupação dos intelectuais sobre a existência e a própria humanidade. Ao final, uma pequena lista conta Malraux, Kant (duas vezes), Char, Heidegger, Levinas, Primo Levi, Paulhan, Kafka. Era a cartografia do pensamento social e da filosofia francesa e alemã, vistas de outra perspectiva: a que estendia a palavra até a experiência desses autores, ou a experiência das pessoas que viviam e também liam esses autores, mesmo naqueles dias de ocupação e campos de concentração. Uma geração havia perecido na Grande Guerra. Outra estava sendo fraturada novamente, como não deixam esquecer a morte de Bloch, ou o suicídio de Benjamin. Ou mesmo a crueza de Heidegger, amargada por Hannah Arendt.

Percebo também que até a implementação desse eficiente e estéril sistema informatizado, da época que o carimbo ajudava a contar a biografia desse livro, desde sua doação, em 2000, foi retirado pela primeira vez em 2005. E mais cinco vezes depois disso, no intervalo de semanas (renovado por alguém que, diferente de mim, não leu em arroubo? Não, impossível, deve ter sido por alguém que tomava fôlego pra começar). Então ficou mais um longo tempo esquecido na estante, sendo emprestado de novo para alguém, que leu de uma vez só, em março de 2007 (lembro de março de 2007, onde estava, que fazia). Mais seis longos anos em pé, a contragosto de seu destino num colo, e foi retirado de novo em 2013, renovado por mais duas vezes por alguém que também precisava se preparar e se condicionar antes.

Fiquei aqui pensando na importância dessa memória, sobreposta por outras, para os dias de hoje. Os tempos sobrepostos, lembranças que ativam lembranças encadeadas pelas sensações e reações: o riso nervoso, talvez o choro, as alegrias impossíveis que desconcertam os ouvintes e suas expectativas.

terça-feira, agosto 21, 2018

Um acordar haikai

Acordei hoje olhando a Huka, nossa gatinha, espreguiçando e enfiando o nariz entre as mãos da Dani entrelaçadas em cima do peito, para logo voltar a dormir. Fiquei olhando um tempo e o sorriso discreto de quem está naquele estado semiacordado, mas ciente do carinho, logo retribuído com um roçar de dedos de leve. Logo pensei, "será que todo mundo que mira para as estrelas, quer conquistar o mundo, consegue parar e perceber a beleza de uma folha amarelando?" e passei a ficar considerando as maravilhas de pausar e olhar pequeno de vez em quando.

quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Reconhecendo Belém

De volta a Belém para fazer um pouco de pesquisa. A última vez que vim foi em 2012 - e tenho memórias boas e más daqui. É um lugar bonito com pessoas muito amáveis, mas foi também aqui que eu vim parar no hospital com intoxicação alimentar. Adorei a comida paraense, mas fiz a besteira de um dia comer numa dessas redes de fast food.

Resolvi ficar no mesmo hotel que fiquei das outras vezes. Mas a lanchonete intoxicadora felizmente não está mais do lado. Agora tô saindo pra procurar restaurantes mesmo. Melhor.

As pessoas continuam incríveis - ajudam mesmo. E não só as paraenses, mas muita gente que vem de outros lugares e que deve beber da água da amabilidade daqui. Impressionante como todo mundo quer ajudar. Gosto demais daqui. Já tinha ficado impressionado antes, e as pessoas, desconhecidas, ainda dão bom dia.
Quase seis anos depois, volto para alguns lugares conhecidos. Alguns, infelizmente, com um ar abandonado. Mas o mais legal tem sido conhecer outros. Uns dias atrás fui fazer uma busca dos edifícios da época da borracha, a belle époque paraense. Encontrei uma pérola no centro da cidade, numa rua ocupada por barracas. A Paris n'America, uma loja de departamento em estilo art nouveau que hoje ainda funciona, mas vendendo tecidos agora.

Hoje conheci o Cine Olympia, que funcionando desde 1912 é o mais antigo cinema em atividade no Brasil. Em art déco, é um cinema longo e charmoso, com cara de cinema de rua mesmo. Fiquei surpreso quando descobri que não precisava pagar, era só entrar e assistir a sessão do dia, a animação La jeune fille sans mains, baseada num conto dos irmãos Grimm. Literalmente uma sucessão de quadros em forma de filme. Cada frame é um aquarela bonita. Eu, que tenho gostado cada vez mais de apreciar a liberdade da aquarela achei a experiência toda - ali, sozinho, nesse cine, em Belém - maravilhosa.

Assisti o filme maravilhado, na companhia de uns dois ou três casais e algumas outras almas sós, talvez fugidas da chuva que caía na rua no fim de tarde.

Ah, o filme era de graça.