Lendo um bonito e iluminado texto esses dias (uma estrela pra quem descobrir de quem falo), fiquei aqui com meus botões, matutando umas idéias (essa imagem meio autista de mexer com os próprios botões sempre me agradou).
O verão desse ano não foi muito veranil, mas, enfim, foi a época dos grandes festivais, inspirados evidentemente nos míticos dias de lama numa fazenda americana 40 anos atrás, e que, sai ano entra ano, vão acontecer com a mesma certeza que o Emmy, o Oscar ou o SPFW.
Glastonbury, Reeding, Wight, Man, por aí vai. São vários e eu esqueço os nomes. Todos com a promessa de serem A reunião definitiva, num blend "democrático" e "eclético" entre os dinossauros sagrados do rock, as bandas cool do momento e a possibilidade de testemunhar o nascimento de algum outro conjunto que será grande muito em breve (afinal, tal possibilidade é real - você pode contar anos depois que viu aquele primeiro show daquela banda antes que qualquer outro conhecesse sem se dar conta que são milhares como você que fazem essa banda ser conhecida pra começo de conversa e então torcer o nariz porque "eles viraram muito comerciais" e então sair caçando novas borboletas underground e alternativas de novidade obscuras - já que de alguma maneira, o que garante a inclusão dessas bandas num line-up desse tipo de evento não é tanto o som, mas o que eu denominaria de "perfil vencedor", o que leva, creio eu, a uma celebração de mesmices que dão certo e que apenas reificam essa certeza: uma boa dose de esquisitice, polêmica, comportamento destrutivo e errático e misterioso e um som que recicla o estilo da geração ante-anterior - sempre pulando uma, numa espécie de elipse do eterno retorno alternada, uma repetição cabalística do showbiz - que deverá ser revolucionário, mas que no fundo é míope e autoritário e não admite sequer a existência de inteligência musical antes do quarteto de Liverpool). A infinita busca pelo novo som genial.
Que nos três dias (este parece ser o número mágico - você nem morre de vez nem acha que foi muito efêmera a experiência) esteja chovendo torrencialmente e que a possibilidade de se afogar em algum rio que transborda, pegar alguma micose pela umidade ou ao menos um resfriado básico, seja real, não importa. Ou melhor, apenas faz a provação ser mais significativa: a idéia de que, não importa quem você ouviu, mas que você fez parte daquele capítulo dourado fadado a entrar nos anais da história musical (lembrado apenas em termos de quem foi ouvido), e reconhece como irmão alguma outra alma aventureira que também lá esteve e lembra a hora que aquele amplificador caiu no meio do show daqueles caras e daquele maluco que subiu no poste de alta tensão e tal como você voltou para casa sentindo como se tivesse participado de uma batalha e... bem, você entendeu. Como uma ordem secreta em que apenas os iniciados COMPREENDEM.
Mas até aí nada muito diferente de você usar uma camiseta "Rock in Rio - eu fui". O que tem de diferente neste tipo de comunidade neo-hippie sazonal nos campos ingleses é que você acha que faz parte de algo maior do que a música, quase uma experiência transcendental que se esforça para atingir algo que nem em sua matriz histórica deu muito certo: a certeza de que você está lutando contra a opressão e a homogeneização cultural, de que você é a favor das causas justas por mais quixotescas que se mostrem, ao mesmo tempo em que constrói uma imagem de pessoa descolada e esclarecida junto aos seus pares e ao seu espelho.
Claro que vão para essas arenas, que rescendem a malte, maconha, suor e amônia, muita gente com a intenção legítima de se divertir, ter um momento bom pra variar - ei, se você não acreditasse nisso, a alternativa seria muito mais hipócrita do que eu estou delineando aqui. Mas as coisas já não são tão simples (já foram?). Você leva sua barraca de mil libras e vai fazer a diferença, ao deixar a parafernália para trás (como uma árvore de Natal, ano que vem você compra outra) e confiar que a organização vai mandar lona, paus e fios para alguma família necessitada na Somália, Etiópia ou um outro buraco esquecido pelo Deus de Abraão, Isaac e Jacó e pelo clube dos 7 (ou 8, ou sei lá em que número está). A versão primeiro mundo do levar um quilo de alimento não perecível (feijão e lugar pra dormir essa gente já tem. Posso dormir agora?).
Se enquanto o mundo enquanto o conhecemos está sendo transformado em um lugar melhor, bandas medíocres e - principalmente - produtores anônimos estão alguns milhões mais ricos e, zás, o ciclo se fecha e tudo faz sentido, podem bancar os magnânimos e doar alguns trocados ou falar que tomam banho de dois minutos e tiram a tomada sempre que acabam de usar um eletrodoméstico em seus lares ou adotar uma criança vietnamita e batizá-la com algum nome de remédio, enfim, isso é apenas efeito colateral (sem contar os produtores de barracas e badulaques de acampamento que também agradecem). Ei, não é legal eleger o Bono como um cara batuta, comprar o i-pod do U2, e proferir, cheio de certeza condescendente, aos seus amigos, no bar: "se deixassem o cara virar presidente do banco mundial as coisas iam melhorar"? Esqueça o fato que essa banda não faz um disco bom há mais de uma década (e de que pensávamos a mesma coisa a respeito de outra figura pública hoodesca).
Numa era em que criminosos vestem um terno e são eleitos para nos governar - e tudo parece natural, como é natural a corrupção que disso advém - nossos heróis são músicos, atletas, modelos e atores, não importa o quão medíocres sejam (ou sua arte, o que é mais trágico), pois eles são o que queremos que sejam e ninguém pode dizer nada em contrário. Nem mesmo eles (o que leva a outra questão - essas pessoas que são adoradas como profetas da verdade pós-moderna e que podem fazer o que quiserem que continuarão a ser idealizados sem restrições, não podem sentir outra coisa que desprezo aos demais infelizes aduladores. Logo a arrogância de muitas dessas superpersonalidades sem caráter, que continuam a ter apoio religioso e podem se comportar como verdadeiros aliens. Ou o que você me diz sobre Michael Jackson? Ou, usando um exemplo aqui da Inglaterra, o cara que está pouco se fodendo pro mundo, Pete Doherty, que, sinceramente, me cansou. Mas isso é uma outra história).
A salvação, a solução DO Problema é vendida nas mensagens eco-amigáveis e conscientes da miséria do Terceiro Mundo. Uma nobreza que é uma cópia apagada de si mesma. Se você "cansou" ou se você, o que é mais econômico e prático, quer fazer a "diferença por um dia", bem, é alguma coisa (aqui existe esse equivalente, o comic relief, que é suportado apenas uma vez por ano, como uma vacina amarga - é importante pra saúde mas é um saco).
Melhor do que nada, certo? Quem aí está pensando "se cada um fizesse sua parte o mundo seria melhor, blá, blá, blá"? Mas enquanto você enfia o dedo na rachadura da represa das tragédias, motivado por algum mantra benevolente da nova era, alguém que percebeu que frases inspiradoras desse tipo são a nova consciência coletiva - esqueça análise, se você jogar na mega-sena e tiver a fantasia de ganhar milhões, mas se não der, ok, pelo menos parte do dinheiro vai para alguma instituição de caridade, mas ei, você não doa para a instituição, você quer os milhões - e que ela, como todo o resto da existência, virou vendável, esse alguém vai se dar muito bem na fita, e não os pandas e gorilas em extinção, não o carinha que perdeu tudo na última enchente. Quem se contenta com sobrevivência? O ditado fala de um lugar ao sol, não na sombra...
A verdade, se há alguma nessa trapalhada toda, é que ninguém mais sabe o que é importante. Ou pelo menos não tem mais aquela certeza, que você descobre bem dentro de você, de que aquilo importa, aquilo vale a pena se lutar por. A certeza de quando você simplesmente Sabe. E quem é que sabe esses dias? Sabedoria é produto perigoso, é passível de ilusão.
E quem pensa que a seriedade é produto em falta no mercado, está enganado. Ela impera e ela castra. Mas é uma seriedade errada, que deixa as pessoas com medo de pensar diferente. Quem acredita que o politicamente incorreto morreu? Quando tudo o que você diz tem que ser pensado, analisado, escrutinado, dissecado, ponderado, criticado, relativizado, sob o risco de você ser taxado de alguma-coisa-ista? Os sentimentos andam mais sensíveis do que nunca. Todos podem ser feridos e ofendidos, todos são potencialmente minorias perseguidas, e você tem a impressão de que pisa num asfalto de ovos e pode tropeçar em algum nervo inflamado e exposto.
Mas então as pessoas ficam bravas porque as barracas não estão sendo mandadas a tempo para onde quer que elas tivessem que ir e estão apodrecendo nos escombros e nas ruínas da folia rockeira. Mas por quê ficam bravas? Por quê o mundo perdeu A chance de se redimir e ser salvo, por quê elas deixaram sua barraca à toa? Ou por quê agora elas vão ter que pensar em outra boa ação para contrabalançar o karma negativo?
A caridade hoje é mais uma desculpa "não vai dizer que eu não fiz a minha parte, o meu está fora da reta", que funciona melhor que Valium na hora de deitar a cabeça no travesseiro.
Quando uma multidão de jovens - que estão se matando a facadas todos os dias e em taxas alarmantes - vão protestar na frente da número 10, Downing Street, não por melhor escolas, ou por menos censura, ou por mais inserção no mercado, mas por não saber o que fazer - O Lord, please guide us and deliver us from evil -, bem, aí, pessoas, está na hora de olhar por cima do ombro e ver onde é que tudo foi pra merda.
Ou estou sendo muito pessimista?
PS - Não sou contra os festivais.
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Um comentário:
Bom, alèm de vir cobrar minha estrela, queia fazer um pedido: me manda o endereço do seu flickr!!!!
Saudadesss chuuuu! Te inhamuuuu.
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