Hoje tive um sonho esquisito. Sonhei que era o Tatu, da Ilha da Fantasia. Quer dizer, no meu sonho eu era o dublador do Tatu no Brasil. E, talvez por motivos de autenticidade, por parte de quem foi responsável por minha contratação, eu era um anão.
Mas desde que a Ilha da Fantasia terminara, lá pelos idos de 1980 e bolinha, a vida boa também havia ido embora. Não que tivesse feito fortuna, mas ganhava bem e fazia um trabalho que amava.
Depois de dublar os últimos episódios da série, havia conseguido uns empreguinhos aqui, ali, uns bicos de animador de festa, nada mais com dublagem. E nada que durasse mais que alguns meses.
Comecei a encarar tudo como uma maldição. Porque a despeito do tamanho liliputiano similar, não era nada parecido com o ator que fez o Tatu. Ainda que quando abria a boca, as pessoas faziam aquela cara com a testa franzida, se perguntando de onde me reconheciam, mas sem conseguir exatamente me localizar. A voz não combinava com o pacote. Para sempre eu fui uma quase-celebridade nunca reconhecida.
Meu emprego atual, era me vestir de Tatu e fazer micagens em um programa de auditório estúpido, desses que existem de monte por aí, sempre acabando, sempre recomeçando, sempre com a mesma fórmula, com diferentes cenários. Se fosse há 20 anos, eu teria tentado o emprego do Praga no Xou da Xuxa.
Bom, este programa, na mtv, consistia de provas que os célebres participantes deveriam participar, no caso jogadores de futebol. Eles se juntavam a moleques do auditório para fazer corrida do saco e outras travessuras típicas dos feriados juninos.
Trabalhava comigo outro esquecido pela TV, que tinha que se sujeitar, como eu, a pequenos nichos na indústria do entretenimento brasileiro, quase nunca com o glamour normalmente associado ao mercado. Eram carregados de humilhação e decadência.
Este esquecido era o Bozo. Um deles, pelo menos. O que atendia o telefone e fazia a brincadeira da corrida de cavalos, nas tardes no sbt.
Em nossa comum desgraça, e pelo fato de termos tido nossos momentos de ouro aproximadamente na mesma época, fizemos amizade atrás das câmeras. Nos intervalos íamos fumar um cigarro no fundo do set, e as vezes saíamos para algum boteco no final do expediente, o que proporcionava uma visão engraçada para quem nos via sentados numa mesinha de ferro, bebendo kaiser em copinhos americanos e falando sobre os bons tempos, ainda em vestimenta de trabalho.
Nos queixávamos também. Ele por ninguém saber que se tratava do verdadeiro Bozo, já que a fantasia era até bem popular; sempre tem um bozo por aí. Eu, porque sempre vivi na sombra, ou melhor, no eco, do pequeno ator gringo. Por tantos anos eu trouxe voz àquele personagem, mas nunca o conheci. Sr. Roarke e Tatu eram parte indelével de quem eu era, do que tinha feito como ganha-pão por tanto tempo, minha profissão. Ainda sim, eu era um anônimo para as pessoas, tão acostumadas a ouvir minha voz nas manhãs de domingo e, claro, anônimo para meus heróis, que deveriam ter dezenas de duplos sonoros ao redor do mundo.
Bozo e eu não tínhamos muitos mais amigos, então fazíamos companhia um ao outro, muitas vezes silenciosa, sorumbática, fora do estúdio de gravação.
Seja como for, o trabalho era muito fácil. Ficávamos apenas pulando ao fundo, em nossas fantasias. Podíamos sair de fininho por alguns minutos que ninguém percebia.
Num desses dias, o Bozo demorava mais do que o normal para fumar um cigarro - fazíamos rodízio; quando um ficava com muita vontade de fumar, o outro tinha que redobrar a animação no palco.
Estava lá, pulando e me sentindo miserável, rodeado por escárnio televisivo, e eis que ouço alguém me chamando. Olho e é Bozo, com a cabeça pra fora da cortina, no fundo do set, me chamando. Aflito, faço um sinal negativo com a cabeça - estávamos filmando. O goleiro Rogério Ceni havia acabado de levar alguma bordoada com um cotonete gigante por um adolescente do auditório que participava da brincadeira e que certamente não era são-paulino. O goleiro-artilheiro estava agora com um maldoso olhar assassino, querendo descontar no pequeno filho da mãe em uma nova prova. Isso significava, claro, aumento de audiência. Tudo bem, acho que dá pra sair um pouco, neste momento de emoção, pensei. Diante da insistência de meu amigo circense, fui atrás dele.
Perguntei do que se travava. E ele me respondeu enigmaticamente "apenas me siga", me levando por um corredor escuro e cheio de equipamentos de filmagem para a saída dos fundos do estúdio.
Abriu a porta e saímos em uma pequena rua, sempre vazia, nos fundos do prédio, que era usada para descarregar material e para a saída de algum artista, que gostaria de ir embora sem a muvuca, tradicional e constante, da porta da frente.
Estacionada ali, apenas uma van, com vidros fumê levantados. Faço menção de perguntar algo e Bozo apenas abre a porta da van e me fala para entrar. Começo a ficar nervoso.
Ao entrar, vejo dois senhores, um muito velhinho mas ainda com um ar imponente estampado no semblante. O outro, de cara simpática e jovial a despeito da óbvia idade avançada, tinha meu tamanho.
Não acreditava, eram Sr. Roarke e Tatu! Comecei a gaguejar, tentar falar algo, o quanto eles eram meus heróis, tudo o que eles significavam para mim e nem sequer tinham idéia. Queria contar minha vida, minhas alegrias e frustrações construídas por uma carreira entregue ao show biz por conta de uma dublagem de um seriado de 30 anos.
Uma lágrima escorreu e rostos sorridentes e compreensíveis apertaram minha mão. Depois de alguns minutos desci da van, que arrancou e foi embora. Fiquei ali, vendo o carro dobrar a esquina, deixando minha vida com mais sentido. Bozo entrou, mas eu não voltaria mais ao set aquela noite. Sentei na sarjeta, com a lua como companheira e acendi um cigarro.
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