segunda-feira, novembro 27, 2017

Algumas reflexões sobre fronteiras sociais e o Clube dos Cinco

Estava só zapeando uns canais ontem de noite, passando um tempinho pra então deitar, quando vi que ia começar O clube dos Cinco (em inglês, The Breakfast Club), escrito e dirigido pelo John Hughes e um dos clássicos dos anos 80 que marcaram minha formação como pessoa. E aí não tive como não assistir tudo, mesmo sabendo que ia terminar tarde e no dia seguinte seria segunda.

Ah, é preciso um parêntesis para contextualizar algumas coisas. Eu me dei conta que nunca tinha assistido o começo desse filme, apesar de ter algumas cenas verdadeiramente marcadas na mente (eu sabia de falas e mesmo de expressões faciais antes de acontecerem, de tanto que eu assisti o filme ao longo dos anos). Isso aconteceu com muitos filmes da adolescência, na verdade - perder o começo deles. Para a geração streaming - ou mesmo aquela que pode apertar um botão do controle remoto e fica sabendo da programação dos canais na hora - essa questão pode passar batida. Mas para quem formou sua educação cinematográfica pela Sessão da Tarde e congêneres isso é um fato da vida significativo. Você pegava o filme já começado. Normal. Claro, ao mesmo tempo, naquela época, havia locadora - e ela era muito frequentada - mas isso valia para alguns filmes e não outros. Clube dos Cinco era um filme de ver na TV, como outros que não são imediatamente lembrados hoje em dia... O fato é que, para muitos filmes importantes para mim, eu posso realmente não tê-los visto inteiros.

Bom, fiz o parêntesis porque isso tem certa relevância para esse post. Ver desde o começo aumentou meu carinho pelo filme.

O Clube dos Cinco começa com os cinco principais personagens (the brain, the athlete, the basket case, the princess, the criminal) chegando na escola, em pleno sábado, para cumprirem uma detenção (forma de punição pouco conhecida aqui em terras brasileiras, que, ao contrário, adota a suspensão). Ao fundo, toca Don't You (forget about me), do Simple Minds, que eleva o, e é elevada pelo, filme, como se verá.

Os adolescentes chegam de carro, deixados por seus pais. Brian, o nerd interpretado por Anthony Michael Hall, é deixado por sua mãe, que lhe adverte "essa será a primeira ou a última vez que te deixo aqui?" (ah, outra coisa, os diálogos são genialmente econômicos - não é preciso muito mais do que isso para sabermos muito sobre a relação de Brian com sua família. Como acontece com as outras famílias, que vemos muito pouco ou não vemos nada, mas que temos bem claras na cabeça como são); Claire, interpretada pela eterna menina ruiva dos anos 80, Molly Ringwald, é deixada por seu pai, que parece não se importar muito com o motivo de sua punição, matar aula para fazer compras; Andrew, o esportista interpretado por Emilio Estevez, chega na camionete de seu pai, que apenas lhe oferece como reprimenda o fato de ter sido pego fazendo o que fez - e não pelo ato que, conheceremos adiante, é um bullying odioso; Allison, a garota calada, meio estranha, interpretada por Ally Sheed, apenas aparece saindo do carro - ela faz menção de falar algo com alguém de sua família que está na parte da frente do carro apenas para ver este arrancando e a deixando só, com algum "até logo" nunca dito de fato. Somente Bender, o encrenqueiro interpretado por Nelson Judd - que está ótimo no papel - chega a pé. Sobretudo, coturno aberto, postura de desafio ao mundo, é o personagem através do qual as reflexões mais profundas feitas pelos cinco serão possíveis.

Os cinco são levados pelo professor Vernon, interpretado por Paul Gleason, para mesas na biblioteca da escola. São instruídos a ficarem sentados e escrever sobre si mesmos durante aquelas horas de detenção, quando pensarão sobre si mesmos e os motivos que os levaram ali. Suas carreiras estão em jogo, logo entendemos. Tudo começa com uma falta besta e simples, mas esse é o futuro para o resto de suas vidas. Na verdade, a certa altura do filme, em uma conversa com o zelador Carl (interpretado por John Kapelos), Vernon se mostra em um de seus momentos de maior sinceridade - e até vulnerabilidade - e confessa que morre de medo desse futuro: essas crianças, quando crescerem, serão os adultos no mundo. Esse é um pensamento que o acorda de noite, admite. Serão essas pessoas que cuidarão dele quando ficar velho. Ao que Carl responde, advertindo: "eu não contaria com isso". Frase ominosa que alerta Vernon para o fato de que ele próprio, mesmo talvez argumentando que educa rigidamente para formar boas pessoas, exagera na forma como pune os alunos (Carl propõe a reflexão: "o que o seu eu jovem diria sobre você agora?").

E Vernon é um idiota. Alguém medíocre que se afirma no exercício de uma autoridade que vira abuso e humilhação. Mas há algo mais etéreo e perigoso no aviso, quase ameaça, de Carl. Vindo de uma visão nebulosa de um mundo em que a empatia é insuficiente. Individualista. De oportunidades desperdiçadas, ou de oportunidades que impossibilitam relações sinceras.

Carl tem um papel importante, ainda que pequeno. Em outro momento do filme Bender conversa com Carl e pergunta como alguém vira um zelador. Na verdade ele queria provocar Andrew, insinuando que este pensava em seguir essa carreira. Mas, inconsequente como é, Bender acaba por humilhar Carl, que lhe responde que não sabia como alguém vira um zelador, que talvez esses adolescentes pensassem que ele é como alguém intocável, um servo, um peão. E que talvez fosse isso mesmo, mas que ao mesmo tempo, nesses anos todos varrendo, passando despercebido, sabia uma coisa ou outra sobre todos eles: ouve suas conversas, sabe o que há em seus registros. Carl é um personagem curioso. Bender é revoltado, ganha de natal um pacote de cigarros - mas para ele ainda há um vislumbre de futuro aos olhos da instituição. E estuda em um colégio evidentemente rico, de elite. O único personagem da classe trabalhadora é de fato Carl. Como talvez Vernon, à sua maneira, ainda que se vanglorie de receber 31 mil dólares ao ano. Mas aquele poder silencioso, daqueles que controlam a própria maquinaria social, apenas Carl pode exercer. De forma significativa, na conversa com Vernon, quando este pergunta o que Carl gostaria de ser quando era criança, esse responde que queria ser John Lennon. Uma resposta besta, aos olhos de Vernon.

Mas Vernon também tem um lugar importante no filme. Extremamente duro, arrogante, baixa a guarda duas vezes no filme. Quando confessa seu medo a Carl e em uma outra cena extremamente tensa e bem feita. Em certo momento do filme Bender retruca a uma bronca e Vernon lhe dá mais um sábado de detenção. A tensão aumenta, as punições também, até que Bender termina com mais dois meses de detenção e a predição cruel de que em cinco anos não será ninguém. Vernon enfim sai do recinto e fecha a porta. Logo em seguida Bender xinga alto, com raiva. A câmera corta para Vernon, que ouviu o grito, mas não voltou para continuar a briga e aplicar mais uma punição. Apenas suspira, triste. Nada é dito, mas ali ficou claro que nenhum dos dois podia recuar na frente dos outros adolescentes. As fachadas têm que ser mantidas, ninguém pode recuar, mesmo que estejam se destruindo no processo. Outra coisa que quem não cresceu nos anos 80 não lembra: a corrida armamentista nuclear como paradigma mais contundente dessa autodestruição agonística entre as pessoas.

Ao longo do filme seguimos os adolescentes que começam como estereótipos e revelam-se como pessoas fraturadas, pela pressão dos amigos, da família. A popular que tem que admitir uma sinceridade cruel de que, na segunda, provavelmente não falará com aquelas pessoas que apenas a ocasião juntou; o "jock" que lembrou, horrorizado, como foi cruel com um menino para que seu pai tivesse orgulho do filho descolado; o nerd que não suporta a ideia de tirar um zero e traz uma arma para a escola; a moça calada que mente compulsivamente e que é ignorada pela família; o encrenqueiro que lembra ao mundo da hipocrisia que lhe faz sofrer, objetivada na figura de um pai abusivo e violento em casa.

E ficamos com a dúvida - será que aquele dia juntos, tendo descoberto tanto sobre si e sobre os outros, os fará serem amigos de fato? Parece haver a promessa e o desejo de que esse momento de passagem possa superar as fronteiras que suas pertenças sociais estabelecem. Ao final Allison beija Andrew, Claire beija Bender, que lhe havia infernizado por boa parte do dia. Brian parece ser aquele que realmente tentará não reproduzir as clivagens - mas a ele parece não haver muito poder de barganha. Faz parte apenas do desprestigiado (na perspectiva do establishment escolar) clube de física - ainda que, por sua vez, tenha rebaixado o clube de modelagem, exemplo de algo manual e menor, não intelectual; como era manual a tarefa que falhou, de acender uma lâmpada num experimento.

Afinal, depois da separação e da liminaridade a estrutura é reafirmada na integração social novamente.

Outros filmes de John Hughes revelam algumas pérolas doídas para reflexão - em Curtindo a Vida Adoidado, Ferris prevê, ao lado do amigo Cameron catatônico, que este provavelmente se casará com a primeira mulher com quem transar - e não terá respeito próprio e não será respeitado. E outros filmes dos anos 80, a despeito do humor banal e exagerado, da história irreverente, misturam algumas angústias existenciais. O Último Americano Virgem tem um final anti clímax que frustra expectativas (de que o protagonista ficará com a moça no final, provando seu valor e mostrando que o descolado é na verdade um imbecil - quando ocorre justamente o oposto) e é o que torna a história poderosa e memorável. Mas acho que é no Clube dos Cinco que essas mensagens são mais centrais à história.

Não temos certeza de que a força das posições sociais prevalecerá. As expectativas sobre como viver, com quem se relacionar, ficam evidentes. Mas a promessa da tentativa, dolorida, é o que temos ao final. Espelhando o começo, Brian, Claire, Allison e Andrew saem da escola e entram nos carros dos familiares. Bender, como no início, vai embora a pé, só. Talvez seja significativo que seja o personagem que o diretor mais tentou tornar simpático aos olhos do público, que nutre empatia com seu tormento e sua, por vezes, crueldade.

A música, novamente, pede para que "você não me esqueça". Mas talvez isso não seja suficiente: algumas coisas deixam de funcionar quando voltam ao normal. Há um sentimento que pode ser mantido dentro das pessoas, com suas boas intenções. Mas e a separação, o fato de que a outra pessoa pode, ao contrário, nem olhar para você na rua no dia seguinte?

Às pessoas são dadas armadilhas como opções. Um pouco antes no filme Allison lembra a Claire, que admite ser virgem: se você diz que não transou é uma pudica, se diz que transou é uma piranha. Uma sociedade feita de ilhas de solidão, transpostas de forma efêmera pelas relações ao longo da vida - e sobre as quais lembramos com dor, inconformados com sua perda e incapazes de mantê-las ou então enterrá-las de vez.

Won't you come see about me
I'll be alone dancing, you know it, baby
Tell me your troubles and doubts
Giving me everything inside and out
And love's strange: so real in the dark
Think of the tender things
That we were working on
Slow change may pull us apart
When the light gets into your heart, baby

Don't you forget about me
I'll be alone dancing, you know it, baby
Going to take you apart
I'll build us back together at heart, baby

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