sábado, dezembro 12, 2015

Descobrir a si



Fui nesta sexta para Santo André, essa cidade tão estranha,  onde pude comprovar a existência daquela palavrinha que aprendi nas aulas de geografia e que mais parece sintoma de resfriado: conurbação. Não deve ser fácil ser conurbado com São Paulo (e adjacências do abecedário). Parece que é tudo uma grande cidade que só termina chegando no pé da serra. É mesmo uma cidade feia, mas com charme... se é que isso faz sentido.

Bom, mas sobre ontem... Fiquei alguns anos sem ir pra lá. Fui algumas vezes enquanto o pai da Dani tinha consultório naquelas bandas. E ontem fui lá de novo, acompanhando, como ajudante de pesquisa, a Dani, que ia fazer a última reunião de grupo de mindfulness que ela estava ajudando a coordenar, no prédio da Escola de Saúde, na praça do Carmo, no centrão de Santo André.

É um programa muito bonito, feito em parceria com a prefeitura de Santo André, para implementar um protocolo de atendimento para trabalhadoras do SUS, sofrendo com depressão, sofrendo com stress, dores crônicas. Daquelas coisas que salvam um pouco o mundo, sabe?

A Dani me pediu pra ajudá-la. "É só ser antropólogo e me ajudar a anotar o que acontece na prática". E foi legal mesmo. Fazia algum tempo que eu não pegava meu caderninho e ficava anotando. Arrisquei até um desenho da coisa toda.

Assisti apenas essa última sessão (foram duas semanas de práticas) e não participei desde o começo, mas deu para perceber que a iniciativa deu certo. As mulheres (eram nove, duas bem jovenzinhas e uma mais idosa, e seis outras com idades no intervalo) fizeram questão de agradecer muito as coordenadoras das práticas de meditação - a Dani e duas amigas dela, uma nutricionista e uma psicóloga. Quiseram deixar claro como tinham gostado, como a meditação tinha ajudado. No final até eu, que estava lá como "ajudante antropólogo que ia tomar umas notas" e fiquei quieto todo o tempo, ganhei abraços de todas - tão agradecidas estavam. Foi muito bom ganhar um abraço de alguém que nunca tinha visto antes e isso não ter sido constrangedor. Abraços de pessoas que não ajudei em absoluto, mas que nem por isso estavam dispostas a deixar de mostrar que estavam felizes. Me senti bem, mesmo que um pouco embaraçado depois. Não fiz nada por aqueles abraços. Mas no final das contas... isso importa para um abraço?

Há algo de muito bacana numa dinâmica de grupo. Depois que a primeira pessoa arruma coragem para contar algo, as outras conseguem fazer também. E os relatos são tão doloridos... Mas bonitos também. A mais idosa logo lembrou como a meditação ajudou nas dores do corpo - e também da mente; ela havia perdido a irmã apenas há duas semanas e estava fragilizada. Estava com medo de ter que ir num psiquiatra e só remédios ajudarem.

Uma outra moça, de vestido vermelho, logo deu o depoimento mais contundente: ela descobriu que não conhecia o próprio corpo... "Tocava o pé e não parecia que era meu", disse. Nestas duas semanas começou um exercício de sentir sensações nas pernas, que não sabia que tinha perdido.

Outra contou como era duro ser taxada de louca; como esse medo, de acabar sendo despedida se descobrirem o nível de stress que passa, faz com que sempre engula as piadinhas, o bullying. E como estava conseguindo não brigar com ninguém. E que isso era importante pra ela.

Mas o que foi mais falado mesmo é a dor. A dor que, para melhorar, primeiro tem que ser reconhecida. Não por acaso, quando a Dani perguntou qual foi o exercício preferido, elas disseram que foi o escaneamento corporal. Havia algo de muito assustador ouvir como essas mulheres, com seus turnos de trabalho extenuantes, de horas de pé a fio, tão fortes, tão resilientes, perderam a conexão com os próprios corpos.

Falaram, quase todas, como descobriram que merecem ser cuidadas também. Porque trabalham com o cuidar de pessoas. E, para isso, precisam estar bem primeiro. A moça de vermelho disse "passei a prestar atenção em mim". Várias concordaram que é muito fácil não se importar. Ou então virarem máquinas, para dessensibilizar o que no fundo não pode ser dessensibilizado. Ou guardarem tudo, ou descontarem nos outros, ou de querer controlar tudo - e não conseguirem, ao final. De como é fácil lidar da pior maneira com o sofrimento dos outros, de deixar de acolher para se proteger. A mais idosa resumiu: "os primeiros pacientes do SUS temos que ser nós". E a moça de vermelho completou: "é bom pensar em mim, em nós, como somos importantes. Me valorizar".

As pessoas estavam descobrindo a si mesmas. E foi difícil ver como a consciência da renúncia de si pode ser avassaladora. Para outras foi demais. Afinal, começaram o grupo com 39 pessoas, há duas semanas. Estas 9 chegaram, como disseram, como sobreviventes. Mas ao mesmo tempo, testemunhar esse sobreviver e esse reconhecer do próprio corpo foi um privilégio.

Que nos sirva de lição, para cuidarmos de nós mesmos também. Ou, como dizia a mensagem de biscoito da sorte, mas no pirulito que eu também ganhei, ao final: "A inspiração que você procura está dentro de você, fique em silêncio e escute" (Rumi).



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O lindo desenho, que ficou perfeito no post, é da minha querida amiga Karina, que está virando parceira deste blog! Quando eu contei um pouco do dia de ontem ela quis me mandar um desenho de modelo vivo, para simbolizar o descobrimento de si...

A foto é do pirulito que ganhei da Vera, a simpática nutricionista, que tem um filho de 14 anos que, como eu, adora ver vídeo de joguinhos no youtube.

Um comentário:

Karina Kuschnir disse...

Chris, que emoção! Sou muito muito fã de todas as rodas de conversas horizontais. É um privilégio participar um pouquinho como leitora e com esse desenho da experiência linda (apesar de difícil) de vocês. obrigada! & parabéns pra Dani também.