sábado, outubro 24, 2015

Era uma vez... muito tempo atrás, num espaço bem, bem longe...

Aviso: parte deste post fará sentido em dois meses, aproximadamente (assim espero, será?). Sim, lá pelo dia 25 de dezembro (ou no entorno, se eu estiver empanturrado de pernil ou muito bêbado de cidra cereser no dia de Natal) eu escreverei um outro post, neste blog mesmo, acessível aqui. ("aqui" é o link que hoje, 24 de outubro, ainda não existe)

É, por um lado, uma experiência, por outro, uma homenagem ao Chris Claremont, roteirista de quadrinhos americano e que eu admirava muito quando moleque e que, não sei porque cargas d'água, lembrei esses dias e que me inspirou pra esse post, mas sobre quem eu já tinha falado aqui.

Lendo as histórias do meu xará não havia como não ter a impressão que ele pensava coisas com anos de antecedência, na composição da trama dos heróis nos quadrinhos. Sobretudo em quadrinhos isso é difícil de fazer, já que normalmente é uma mídia bastante imediatista e, na verdade, longe de intocável nos cânones que constrói. As histórias dos personagens são constantemente ignoradas pelos roteiristas, que resolvem criar uma nova origem, uma nova saga... as vezes mudando completamente o perfil de um personagem já estabelecido. É relativamente comum isso no mundo da oitava arte.

Então eu ficava realmente impressionado com as histórias do Claremont: quando relia alguma, depois de um tempo, eu percebia que ele já havia lançado alguma pista, que na época da publicação poderia muito bem passar despercebida, mas que, anos depois, faria sentido à luz do que vinha posteriormente. Seria um roteirista de quadrinhos fenomenologista? (peço desculpas, piramos numa discussão sobre fenomenologia essa semana, lendo o bonito livro do Rabinow sobre Marrocos: no livro, na sua própria organização, o sentido de algo é dado pelos efeitos, retrospectivos, digamos assim, do que vem depois. Ou algo assim, esqueçam isso. E é besteira, não tem nada de fenomenologia nesse futurismo bobo - é só alguém que planejava bem suas histórias e tinha uns bons truques na manga - o Claremont, não o Rabinow! Sim, pois é. De qualquer forma, esse começar do meio pra ir pro começo não dá certo... -atenção! Referência ao experimento!! Até que dê certo!)

Pois bem, essa experiência de atualização de uma memória que não é só minha, mas que ainda assim é única para mim, deve acontecer na reflexão no futuro!

***

Ao contrário de Humphrey Bogart (1899-1957), que em certo momento de sua carreira já havia consolidado uma imagem na sua persona artística (do personagem durão, mas com uma vulnerabilidade desarmante), apesar da descontinuidade com sua origem social (o que aconteceu, muitas vezes, à sua própria revelia, como o período de sua produção durante a guerra mostrou, como fundamental neste processo, sobretudo com O Falcão Maltês, 1941, Casablanca, 1942), como conta lindamente o meu amigo Felipe, que agora acaba de lançar em livro sua dissertação de mestrado, temos um caso aparentemente diferente, até mesmo invertido, com o Henry Fonda (1905-1982), que quando protagonizou o hiper vilão Frank em Era uma Vez no Oeste (1968), chocou o público e fez desta quebra do pacto (mesmo que ao reconhecê-lo), um dos elementos da imortalidade do que muitos consideram a obra prima de Sergio Leone (1929-1989).

Claro, são contextos completamente diferentes, como me lembrou o Felipe nessa semana, durante o lançamento do seu livro. Filmado na Espanha, o western do Leone não se encaixava exatamente no contexto clássico de Hollywood, mesmo lançando e relançando atores e atrizes ícones do cinema mainstream americano, uma certa tradição européia (mais precisamente, italiana), estava indelevelmente impressa em cada frame de Era uma Vez no Oeste (e em outros filmes do Leone deste período).

O momento também era diferente. Em 1968, ano do lançamento de Era uma Vez... algumas das convenções de gênero mais estruturantes do cinema já estavam consolidadas (algumas das quais graças à relação de Bogart com outros representantes dos grandes estúdios). Mas talvez exatamente por isso, o que o Felipe mostra para os atores e atrizes de Hollywood, cuja vida e trajetória, esmiuçada na tensão entre performance e persona e origem, revela um espaço de atuação (literalmente) bastante limitado no meio das disputas mobilizadas pelos grandes estúdios e rebatidas pela audiência cada vez maior e mais relevante na constituição da "Indústria", talvez possamos contrapor com o que faz Leone, para pensar em uma espécie de sociologia feita pelo diretor italiano. Justamente por subverter uma análise do universo hollywoodiano.

Em 1968, ao contrário daquele momento definidor do período da guerra para Bogart, Fonda já era um ator com seu lugar consolidado em Hollywood. Mas é exatamente aí que acontece a subversão. Leone tinha plena consciência de que o público estava acostumado a associar Fonda com personagens bons, heróis, moralmente superiores. E é através de uma ressignificação, processada tecnicamente com maestria, dos olhos azuis angelicais, sinceros, capturados nos famosos e idiossincráticos zoons de Leone, possibilitada pela nova composição, com o afastamento mínimo da câmera, que agora ajuda a compor o retrato de um homem vil, sádico, justamente amoral, apenas pela barba por fazer e o sorriso maldoso, que o público se surpreende, justamente por um choque da quebra do pacto, da morte da persona com a que estavam familiarizados, mas que ao mesmo tempo aprende a reconhecer a linguagem e o código proposto, sobretudo em contraposição ao rosto duro, amargo, mas singelamente relacionável de Jason Robards (1922-2000), também portador de olhos azuis, mais aguados e uma barba ainda mais cerrada, índice de um sujeito batido, endurecido, mas também marcado por uma dignidade no sofrimento - e, sobretudo, destituído da vilania pouco terrena, pouco humana e mais demarcada por um afastamento quase místico de concretude, uma ideia de mal, representada por Fonda (nesse sentido, Cheyenne, personagem de Robards, com nome indígena, mas bastante euroamericano, bem poderia ser interpretado por Bogart, se este ainda estivesse vivo então) - que este filme é, para mim, uma tentativa de reflexividade da própria cultura ocidental (heim, pera lá, como isso aconteceu? Onde? Quando?). Assim, como Era uma Vez na América (1984) e Quando Explode a Vingança (1971), os outros filmes da trilogia da América). Uma narração, em voz alta, do ritmo de transformação da vida, mas para a consolidação de algo bem particular e que tende a se tornar quase paisagem, natural - a vida tal como ela é/chegou a ser. Narração de períodos longos, num só fôlego, como Saramago. Nesse sentido, não há como não lamentar, angustiado, o fim constante que se anuncia, sobretudo na ideia de uma trilogia de uma saga (como são as trilogias, aliás): um fim que é eternamente velado; se está sempre morrendo, sempre perdendo inexoravelmente algo que mal chegou a ser e, por exatamente por ser história, tem em si todo o peso da destruição do que é atemporal.

Resta compreender o enigmático personagem anônimo, identificado apenas pelo nome de um instrumento (mas, sobretudo, da evocação musical que lhe acompanha na trilha magistral de Morricone, 1928-), Harmonica (gaita), interpretado por um outro ator de olhos azuis, quase mortos, de Charles Bronson (1921-2003). Bronson não se parece em nada com o índio que viu seu irmão ser morto pelo personagem de Fonda quando adolescente (talvez ele pudesse ser um Cheyenne? Mas não, não para Leone - que justamente pirraceava com as convenções "físicas" dos atores! Mesmo as vozes não precisavam combinar com o personagem - as dublagens toscas são também marca registrada, que ele de fato não achava ser um defeito).

Mas não importa. O que importa é o rosto talhado quase por uma lente expressionista de Leone. Não há reconhecimento, exceto pela ambiguidade do personagem de Bronson - e, sobretudo, no de Robards.

Pois essa é a expectativa de uma geração, a ser atualizada daqui a dois meses. Será que vai dar certo?

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