sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Curriculum Vitae

Um dos seriados que mais gosto de assistir é House.
TV, nos últimos anos, nos EUA e aqui (no caso específico das sitcoms e dos programas importados), perdeu um pouco do estigma midiático de uma década atrás - quando em comparação com o cinema. Não sei se isso começou com Seinfeld, ou Friends, ou algum outro programa, mas notou-se que existia qualidade na telinha. E mais, os seriados ficaram mais valorizados e os atores passaram a ganhar mais, assim como os famigerados roteiristas e demais apêndices do ramo. Emmy ganhou glamour. Bafta ganhou espaço. Screen actors guild reapareceu. Hoje não trabalham na tv apenas os novos rostos. Gente consagrada na película migrou - e não apenas os atores em fim de carreira.
Se ainda não chegou no nível hollywoodiano de prestígio (que diminui exponencialmente, devo acrescentar; junto com a música americana, para mim moribunda), pelo menos trabalhar em seriado é, hoje, uma boa opção de trabalho entre os profissionais da classe.
E Hugh Laurie é um dos melhores atores que apareceram na tela em muito tempo. Acho que poucos conseguiriam tornar seu personagem simpático. Sua atuação é simplesmente deliciosa de assistir.
Enfim, não é exatamente sobre isso que quero falar. Lembrei de House porque esta quarta temporada, para mim não tão boa quanto as outras mas ainda sim excepcional, adicionou uma fórmula cada vez mais difundida que, acho, merece uma certa preocupação. E não pelos motivos banais sempre assinalados pelos cabeças de plantão - "o nível da televisão está horrível". Se isto é verdade, também não é novidade. Me refiro às eliminatórias voyeurísticas em voga.
Para quem não acompanha o programa (e, sério, faça algo a respeito), um rápido resumo:
House, diagnosticista brilhante mas com sérios problemas de relacionamento com o próximo, perdeu toda sua equipe-saco-de-pancada no final da terceira temporada. Agora ele quer contratar três novos pupilos, selecionando-os de um grupo de algumas dezenas de médicos candidatos. A cada episódio (mais ou menos), o sádico processo seletivo prossegue, ao mesmo tempo em que os casos enigmáticos vão acontecendo como de praxe.
Antes de House, que passa às 23:00, vi Hell's Kitchen, o programa do chef-belzebu Gordon Ramsay, em sua terceira temporada. Antes do Hell's Kitchen, vi American Idol, sétima temporada. Nos intervalos ia vendo Big Brother, dia do paredão.
E por aí vai. Deu pra sacar o drama, não?
Agora, neste momento cósmico da atual conjuntura socio-econômica-cultural-política da humanidade, perdida em uma insanidade avaliatória porque, enfim, não há espaço para todos; em que temos um vestibular no final do colegial, depois mestrado, doutorado, pós-doutorado (ou residência, exame da ordem, rachão...) etc; para então tentar concurso público, envio de curriculum, entrevistas, dinâmica de grupo, correr atrás de migalhas significativas, ou simplesmente fazer uma macumba braba para os que lá já estão se aposentem (ou pior); e em que a diminuta diferença que decide uma contratação pode ser porque ciclano faz uma torta de frango melhor que fulano, e em que colegas escondem os livros do exame com propósitos sabotadores... bem, neste momento dog-eat-dog, parece loucura que, nos momentos de lazer, as pessoas queiram ver este tipo de sofrimento, como que para esquecer que nós mesmos temos de enfrentar os ritos e lembrar que há outros igualmente fodidos (e que se sujeitam ao escrutínio público televisionado). Claro, mesmo os reality shows não passam de ficção (ao menos para quem assiste). Mas eu acho que o fenômeno é significativo; e é cruel ter que se deparar com a esquizofrenia da competição diariamente. Mesmo no sofá de sua casa.
É a celebração da provação pela humilhação em que desesperados se sujeitam, voluntariamente, em arena e em meio aos leões.
Vinte anos atrás - agora há pouco em termos evolutivos - meus professores eram contratados, pelas instituições de ponta, ainda na graduação! Como mudou tudo tão rápido? Terá o mundo lotação? Como um elevador? "Capacidade máxima: x bilhões ou y toneladas"?
Quem quer entrar numa joint venture comigo para lançar a idéia de um departamento de antropologia em Marte?

Um comentário:

Daniel F disse...

Oi Chris,

e o Pedro Bial é poeta e fã do G Rosa! Deve ser por causa do cramunhão...

já pensei também que essa atração pela tortura televisiva tem a ver com um certo "déficit de realidade" da nossa vida, uma sensação desse tipo.

Abraço!

Daniel.