Ok amigos, estão com o chocolate quente em mãos e a coberta ao redor dos ombros? Estão preparados para ouvir uma história verdadeiramente assustadora? A história, esta que está para ser narrada, é, entre outras coisas, sobre um assassino arrependido em busca de uma figura paterna. Mas antes do dobrar dos sinos, por assim dizer; antes do desfecho desta saga repleta de falso glamour e segredos assombrosos, saberemos algo sobre alguns dos mais conhecidos artistas cujas alcunhas adornam as estrelas nas calçadas hollywoodianas, um ensandecido-mas-de-bom-coração escritor de screenplay, bem como sobre um complô internacional de proporções gigantescas e outras besteiras.
Encontramos nosso primeiro protagonista reclinado sobre uma perna num ângulo improvável. Sua perna. Completamente inconsciente, quebrada, inútil. Se aproximarmos, zoom!, close up!, e dissiparmos um pouco da escuridão que, de outra maneira deixa os detalhes completamente invisíveis, é possível perceber que ele está ensopado. Um líquido viscoso. Como ouvimos um arfar resignado, aliviado, mas alto o suficiente para perceber dor, somamos um mais um e, voilá, está sangrando. Muito. Estará morrendo?
Se pudéssemos nos valer do olfato agora, saberíamos que além do cheiro de mofo que impregna o recinto escuro, tiros foram disparados. Aquele fedor de pólvora que se dissipará em breve, deixando apenas o cheiro de medo. E morte. Mas como vocês não podem sentir estes odores, terão que confiar em mim neste ponto. Mas sou um narrador honesto. Tanto quanto narradores podem ser, de qualquer maneira.
O zoom agora é o suficiente para discernirmos alguns traços. O cabelo empastado no rosto, o terno elegante-ainda-que-arruinado, o sorriso. Nosso protagonista sorri, apesar do óbvio tormento. E então uma voz sai do negrume de um canto insuspeito, alguns metros à esquerda. Não está só. Ele volta seu rosto para a direção da voz, ainda fraca e indistinta para entendermos algo.
- Maldito complexo de Cluster de vocês americanos. De onde vem essa idéia de morrer... como vocês dizem... "in a blaze of glory"? Esse derradeiro sacrifício grandioso que vocês anseiam para o apagar das luzes? Há algo de realmente nobre em ir dessa maneira? Todos os pecados são perdoados no tiroteio final?
- Que merda você falando? Responde a voz, finalmente forte o suficiente para se fazer ouvida. Uma tosse atormentada.
- Estou falando de Butch Cassidy e Sundance Kid. De Dirty Dozen. Da porra do Young Guns. De Magnificent Seven. Bem... esse aí vem do Kurosawa... mas você sabe do que estou falando, mate.
- Você poderia estar falando de você, não é chapa? O que você acha que acabou de acontecer por aqui além de uma cena saída de um filme do John Woo?
- Sim, mas não tínhamos alternativa. E não acho tudo isso poético, ou mesmo grandioso... Ainda que ache tudo estranhamente engraçado agora que aconteceu...
Risos entrecortados com uma tosse excruciante.
- Para sua informação, nunca gostei desses filmes.
- Ah, blasfêmia.
- Vai se foder. É verdade.
Silêncio de alguns segundos. Insuportáveis.
- O que você está pensando? Não acredita que exista um americano que escape dessa sua grande teoria sociológica?
- Não, estava pensando no meu tio, Alzheimer.
- Seu tio tem Alzheimer?
- Ele se chamava Alzheimer.
- Como a doença?
- Ele era filho do homem que diagnosticou a síndrome.
- Como as doenças têm nome de pessoas, afinal de contas?
- Ei, pode não ser tão glamouroso como batizar cometas ou alguma porcaria de fórmula, mas se você trabalhou duro para descobrir algo científico, não gostaria de entrar para a história, mesmo que seu nome seja odiado e temido toda vez que fosse pronunciado?
- Não sei. Acho que não. A idéia não me agrada nem um pouco. E não é que vão lembrar de mim, de qualquer maneira. Apenas uma palavra, um nome descarnado. Lou-Gehrig. Parkinson. Cushing. Você sabe algo sobre esses tipos?
- Não. Você tem um ponto aí. Mas eu também não gostaria de ser lembrado assim. Apenas lembrei de meu tio agora.
- O que ele te disse afinal?
- Quando eu era apenas uma criança ele já era muito velho. Morava perto da minha escola, então eu costumava ir para lá depois da aula e lhe fazer companhia até minha mãe vir me buscar. Normalmente ele ficava ali, apenas olhando pela janela, sem dizer muita coisa, e eu me acostumei a brincar sozinho na sua sala. Um dia, me lembro como se fosse ontem, estava imaginando uma aventura de índios e cowboys quando ele saiu do seu transe usual, olhou para mim e fez um sinal para que me aproximasse. Esperou até que eu estivesse muito perto e sussurrou "nunca confie num escritor de screenplay".
- O que ele quis dizer com isso?
- Não sei. Ele tinha Alzheimer. Ele não falava nada com nada.
- Vai se foder. Você está zoando comigo.
- Ei, história verdadeira. Mas fico pensando se ele não tinha razão. Veja onde nós paramos. Tudo por culpa daquele filha da puta.
A segunda voz pareceu concordar com um suspiro e novamente fizeram silêncio solene, antes da escuridão aumentar. Inexorável.
Fade out.
Mas agora já nos aproximamos do final de nossa história. Deixe-me voltar alguns dias, longe da ensolarada Los Angeles, para a úmida e fria Londres...
continua...
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