Quantas vidas cabem numa pessoa com convicção suficiente pra
não se satisfazer ou não ter convicção suficiente pra teimar? Pensei nisso
hoje, lembrando de lembranças de um outro eu com tantos sonhos tão diferentes. Afinal,
quando é que esses sonhos deixam de definir e viram memórias? E como saber que
essas memórias de fato não são coloridas por sonhos novos?
Hoje fui pagar o IPVA do carro, mas tinha esquecido que era
possível quitar todas as taxas juntas. Paguei primeiro o IPVA e depois, quando
fui ver o licenciamento, descobri que não tinha como pagar separado. Só pagando
esse combo de taxa – com o IPVA incluído de novo. Toca pegar senha pra ser
atendido por bancário humano. Desvio da loira grossa que fica na mesa da frente,
distribuindo sua cota de miséria cotidiana – será que é castigo atender o
público? Quase sou atingido por um espirro tão grande, de um grande moço
novinho com cara de entediado que acompanhava a mãe no banco, que pensei que os
seguranças fossem sacar suas armas, achando tratar-se de um assalto (tenho
pavor de segurança de banco e mais ainda quando chega um carro forte). Dez e
dez da manhã, já existe uma fila considerável. Espera, espera. A bancária
humana, depois de ouvir meus lamentos, diz que não é possível pagar mais
separadamente. “Agora tem que esperar dois dias e tentar de novo, quando o
sistema computar o pagamento já feito”. “Dois dias?”. “Sim, dizem que é online,
mas não é coisa nenhuma”. Volto pensando nas vantagens da tecnologia a serviço
da burocracia. É por essas que eu continuo não achando que estou perdendo muita
coisa sendo um desfavorecido computacional. Não quando tudo ainda é decidido
por alguém sem muita boa vontade.
Fiquei uma semana na praia. Em Itamambuca, litoral norte de
São Paulo. Dias tranquilos, muita chuva, muito sono, então consegui descansar –
não sem brincar com o bebê-sorriso, Theo, e cozinhar bastante com a Luiza, que
se mostrou uma cozinheira de mão cheia. Nas tardes preguiçosas, nos intervalos
de trabalho de um textinho que estou escrevendo, li Flush, da Virginia Woolf,
presente da querida Karina – e gostei muito! Não sem algum sofrimento (tenho
problemas com os problemas dos animais), mas completamente fascinado pelo texto
e pela perspicácia da perspectiva canina sobre o mundo. A passagem sobre a
experiência constituída pelos cheiros é fantástica e deliciosa de ler! E pensar
que foi um livro escrito despretensiosamente, pra descansar de outros projetos...
Tinha levado um livro do Schneider, mas a biblioteca da casa que alugamos era
muito interessante, então resolvi investir em outra ficção. Achei lá um romance
da Agatha Christie, que eu sempre gostei de ler quando mais novo: Morte na rua
Hickory. Foi interessante ler dois best-sellers de duas inglesas mais ou menos
contemporâneas, num intervalo curto de tempo. A prosa de Christie é mesmo muito
boa e fácil de ler. E os mistérios ainda entretêm – eu me surpreendi com a
resolução do crime, pela dedução de Poirot (interessante que este é um dos
casos em que ele recebe bastante ajuda da polícia – ele está mais velho e já dá
sinais de que não é infalível). Mas é um romance que envelheceu. Diferente do
livro de Woolf, que dá pra ler e reler - e imagino que continue assim por muito
tempo.
Um comentário:
Ohhh, amei este post! É totalmente o espírito do Flushbacks que tanto admiro! A historia do banco e do ipva ficou perfeita -- naquele ritmo de filme dos irmaos Cohen que voce emula com perfeição! Fiquei mais uma vez morrendo de inveja dessa casa na praia e também saudosa das duas autoras inglesas que amo. Você só podia ter sido mais bonzinho e nos explicado porque o livro Flush se chama Flush! Keep writing, Chris, desse seu jeito ótimo e tão bom de ler!!!
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