domingo, julho 26, 2009

Tabaco

Quarta-feira fui na feira de livros que de vez em quando acontece no ginásio da unicamp, saciar meu eterno vício literário. Encontrei alguns amigos e me diverti fuçando páginas e títulos por algumas horas.
Saí de lá com econômicos dois livros, a custo de muito auto-controle e parcimonia, estipulados por um teto orçamentário que, felizmente, cumpri.
Comprei um lindo livro de História da Arte, de T. J. Clark, sobre arte moderna francesa, que parece muito promissor. E um outro de Julio Ramon Ribeyro, autor peruano bastante desconhecido nestas bandas (e ainda anterior que Vargas Llosa). O título já havia chamado minha atenção: "Só para fumantes". Além disso, sou fã das edições da Cosac.
Comprado.
O primeiro conto, o que dá o título à coletânea, foi umas das melhores, mais sinceras e singelas histórias que eu já li.
Emocionada e emocionante, é um relato autobiográfico deste autor que diz não pretender fazer nenhuma elegia ou diatribe sobre o fumar; mas, não é possível deixar de notar, mesmo com toda tragédia narrada (que fica ainda mais insuportável com o humor finíssimo e a ironia absurda e macabra que só um fumante convicto tem sobre os problemas que lhe afligem depois de uma vida de fumaça), o que Ribeyro de fato faz é alçar o cigarro à categoria de núcleo vital, ao redor do qual gira toda sua trajetória. Quase como se recordasse do grande amor de sua vida, no leito de morte, ditando sua história para uma enfermeira qualquer. Deprimente e encorajador.
Não quero parecer elitista, já que uma pessoa que nunca colocou um cigarro na boca, ou alguém que já experimentou e não entende qual é toda a comoção sobre o prazer de uma tragada, ou mesmo alguém que conseguiu, finalmente, parar de fumar, pode muitíssimo bem apreciar a beleza do conto. Mas eu acho que o relato toca de uma maneira particular todos os fumantes, que de uma maneira ou outra odeiam e adoram aquele cigarro depois do café, ou aquele depois do almoço. Ou ainda aquele na frente do computador. O contemplativo. O que se acende para esperar. O na mesa de bar, com um copo de cerveja. O que você acende com sofreguidão, depois de esperar até o último minuto para sair do ambiente anti-tabagista (não é?). O que é aceso sem convicção, apenas ato mecânico. O que se acende com culpa. O que se acende com alívio. O clichê, logo depois da trepada. O que se acende dirigindo, ouvindo música e cerrando os olhos pelo sol. O que se acende quando não se quer falar com ninguém. O que te faz companhia. O que te salva, nos momentos de silêncio desconfortável. O que é especial, eternizado na memória. O que é efêmero, injustamente sacrificado e transformado em bituca amassada sem poder proporcionar o prazer de seus semelhantes.
Esses fumantes se sentem realizados com o relato. Como devem se sentir os apaixonados, que leem os poetas e pensam "esse entendeu o espírito da coisa".
A maior tragédia, como bem notou Ribeyro, é que, a despeito da inegável e umbilical relação que existe entre a escrita e o cigarro, pouquíssima gente escreveu sobre o fumar, assunto menor, mesmo para os mais talentosos fumantes.
Quase encarado como uma falta moral, uma falha de caráter da qual a única saída é se envergonhar e proclamar o desejo de um dia parar - a humilhação de se acreditar que se fuma por uma propriedade escravizadora das substâncias e da fumaça quase mística - o fumante raramente é convicto de sua escolha. Ou ao menos acredita que não há espaço para seu depoimento - o que cada vez mais é verdade, dado o crescente cerco de constrangimentos ao tabagista, tratado cada vez mais como um leproso, um pária, ônus da sociedade e responsável pelo rombo orçamentário dos sistemas de saúde. Se trata, para este, quase de um assunto pessoal.
A questão é que, eu acredito, não se pode pensar apenas em termos de propriedades cancerígenas cientificamente comprovadas, mas se trata, sim, de algo muito aparentado com uma religião. Com seus mistérios próprios, sua fé cambaleante, seus evidentes rituais diários (afinal, quem vai na igreja todos os dias? Se é antes um fumante do que católico, judeu, muçulmano), a relação com o cigarro não é pragmática. E como tal, acho que é muitas vezes injustamente julgada.
O que me faz, aliás, pensar que esta proibição - e nem digo se certa ou errada - é completamente hipócrita. Que me ofendem outros crentes, não é preciso dizer. O argumento de que se prejudica o fumante passivo? Não preciso nem discorrer exemplos de males ainda mais nocivos, também colaterais de direitos inquestionáveis, como andar de carro, coletar dízimo, praticar corrupção, propaganda de pasta de dente, amar e deixar de amar...
Ribeyro não é um profeta do tabaco. Mas é seu cronista nada parcial.

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