Esses dias tenho ficado com a impressão que meu cérebro se transforma em geléia, minha miopia tem aumentado e tenho andado tão curvado que começo a pensar que estou virando Quasímodo.
Imagino que é o preço que tenho que pagar por meu voyerismo e essa minha intromissão. Tenho acordado fantasmas, ressuscitado conversas que há muito descansavam em silêncio. Tento demonstrar respeito, mas não é algo de se sair incólume.
Meu prazer em transformar minha bibliografia em humanos exige um sacrifício. Como se mexer neste equilíbrio passado não fosse tarefa leviana, lidar com os poderes da alquimia e do éter. Nem acho que deveria ser, de qualquer maneira.
Mas não há escapatória, eu mergulho no fluxo da recordação alheia, assumo meu papel de leitor onisciente - ou se preferir, de paranormal e vidente. Sinto o gosto do vício que corre em minhas veias como a endorfina abençoada e entro, no que é jargão corrente do meio basquetebolístico, in the zone.
E contemplo fascinado cada letra, bonita ou feia, cada erro de ortografia, cada declaração de amor, cada relacionamento insuspeito, cada desabafo, cada crítica cáustica, cada exemplo de amizade, cada tristeza e cada sucesso, cada gentileza e cada notícia, e começo a enxergar um filme do passado, em que aquelas pessoas que para mim eram nome apenas, ganham cor, cara, som. Mas então lembro que são vidas que se findaram, ciclos que, ainda que escondidos e enterrados, estão fechados. Essas vozes, tão vivas e tão vibrantes, estão mortas. Essa quase amizade que começo a estabelecer, é via de mão única, e sei que minha própria voz nunca mais chegará em seus ouvidos e que arrisco me machucar.
E chego à conclusão que nunca alguém ficou tão próximo, para então sua distância parecer tão punjente..
Tento retraçar passos e caminhos percorridos, mas estes são tortuosos e muitas vezes desaparecem, sem deixar vestígios. E então tenho que redobrar meus esforços, pensar em outros percursos, e ter que me conformar com o fato de que talvez eles não mais existam. Fico com o gosto, salgado de suor, de algo interrompido, de apenas flashbacks de histórias.
Mas ainda sim tenho que acreditar que essas mesmas vozes ainda merecem ser resgatadas. E então respiro fundo, ajeito meus óculos, estalo as costas e continuo a trabalhar.
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Um comentário:
Suas palavras me fazem pensar, que de fato não "damos voz a ninguém", pelo contrário, ficamos à espreita e talvez consigamos fazer de nosso caminho o eco dessas muitas vozes que ouvimos-lemos...imaginamos...
ter um bibliografia viva é estar nessa trilha de seres e sentidos tão moventes qto o nosso próprio olhar....
lindooooo texto....
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