sexta-feira, fevereiro 05, 2021

Eu já achava que não ia conseguir parar um pouco. De trabalhar, de pensar na amargura do país, de trabalhar pra não pensar. Mas aí, menos do que por uma decisão, mais por impulso, resolvi comprar novos livros e ler - há algum tempo eu decidi que era preciso decidir, mas muitas das decisões são para coisas que não cumpro, e as promessas viram decepção.

Seja como for, comecei a ler. Porque lendo a gente para. Acabei não comprando os livros como planejava, mas foi melhor, ganhei de presente. Livros que tinha ouvido falar que eram bons, mas não sabia muito bem por que, o que contavam de fato. Mas eram bem recomendados pelo universo, os títulos me soavam bonitos e as capas são lindas. Não é assim que alguém começa a recomendar algo? A gente joga alguma coisa ao vazio e encontra algo, geralmente belo.

Talvez, de forma um tanto vaga, eu tenha percebido um parentesco entre estes livros, três deles, mas vieram mesmo juntos só mais porque ouvi que eram bons e é melhor quando os livros chegam fazendo companhia entre si. Talvez as conversas entre eles tenham começado no pacote do correio (ainda que um tenha vindo um dia depois, sozinho, um pouco atrasado, mas logo irremediavelmente unido aos outros). Mas quem sabe esse namorico entre os personagens e o enredo tenham florescido na minha cabeça. Ou, ainda, pode ser que tenham tagarelado mais por conta da entrega com que os li. Porque eram bons, é claro. Mas em algum momento essa conversa, que decerto já existia, sem precisar de minha ajuda, ou dos serviços de entrega e correio, por sua vez alimentou a voracidade que percorri as páginas. Logo soube que eu tinha mesmo que parar todo o resto, porque não era possível parar agora. E que ao final eu talvez descobrisse alguma coisa que eu acho que apenas intuía, na melhor das hipóteses. Porque não era meu mundo.

Comecei pelo livro mais antigo, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Não porque fosse o primeiro que foi escrito entre os três, ainda que eu possa justificar assim se me perguntarem de supetão, mas porque era o que tinha mais curiosidade para saber do que se tratava. Talvez também porque fosse uma autobiografia - e eu adoro biografias. Autobiografia cheia de literatura, é certo, mas há muito tempo eu já não acredito na verdade sem poesia. Ou, inconscientemente, por pena, fosse porque era o que chegou só e um pouco atrasado. E que leitura foi. Pausava apenas quando os olhos ou as costas pediam, mas a cabeça teimava em continuar revendo a vida da Maya Angelou, vinda de uma pequena cidade no sul dos Estados Unidos, crescida no entre-guerras de uma memória de escravidão ainda muito quente, muito presente, mesmo que no ressentimento e no racismo mortal, nas formas de opressão ainda mais legalizadas porque erigidas na falta de imaginação, de que poderia ser diferente. Na forma das muitas maneiras em que dívidas são feitas. Nem só monetárias.

Foi fácil entender, mas difícil compreender, a sinceridade da raiva admitida em vários momentos, que só era atenuada nos sonhos ou na conversa escondida, confessada - como a confissão deveria ser, sussurrada, comedida, cúmplice, mas, também, nunca realmente saciada. Digo difícil de compreender porque esta raiva honesta parecia se conciliar com uma recusa de uma maturidade amargurada, então refém. Ciente da dureza do sofrimento, mas conhecedora de que para se viver era preciso, justamente, viver, mesmo que peleando. O que é de uma grandeza que a gente normalmente só vê nas histórias exemplares da história e da literatura (muitas vezes, a mesma coisa). No caso da Maya, isso foi possível escrevendo.

Mas a crueldade do racismo não veio desacompanhada da secura do machismo e da violência de gênero. E percebi, entre doído e encantado, Maya crescer mais rápido do que deveria. Machucada e forte. A inocência machucada, mas salva pelo encantamento inesgotável e irrecusável, que só a inconformidade permite existir. A importância rara da vitória do campeão Joe Lewis contra o lutador branco, o presente salva-vidas na forma do livro que lhe foi dado quando as coisas pareciam sem saída, a constância do irmão Bailey, a religião rígida mas amorosa da avó, entrelaçaram a trajetória de Maya com a de seu povo, a história ancestral do sul norte-americano, que bem pode se ligar ao sertão baiano.

No mesmo dia que terminei o livro da Maya, a quem chamo, por carinho, pelo apelido, comecei Torto arado, de escritor homem, Itamar Vieira Júnior, mas que deu lugar a duas personagens mulheres, grandiosas. Duas irmãs, silenciadas apenas para as coisas que não eram a terra, ou a família, ou as coisas que importam. Uma terra muito parecida com o Arkansas, na qual nunca se fica muito parado, mas da qual nunca se sai de fato. Onde o sofrimento, temperado com trabalho, garante que lá se viva e lá só se pode morrer, enraizado. E que livro! História também de luta, da qual eu só sei lendo, e que é longa, como a vida de Maya. Mais longa ainda, na verdade, porque é passada pelos pais, e também pela avó, figura onipresente ao que parece, na criação da gente que tem mãe e pai que não podem se dar ao luxo de estacionar e, quando envelhecem e finalmente assentam, veem tristes a prole buscar o mundo por sua vez. Mundo injusto, mas também bonito, na miudeza das coisas que se percebe, quando se vislumbra algo muito grande. Mas que é difícil perceber, no conforto, ou no ódio, que escondem muita coisa, de maneira semelhante. Mas essa injustiça não impede a espera por alguma redenção. E cria o compromisso do testemunho, sobrevivente.

Não passou uma semana desde que os livros chegaram e comecei o terceiro, ganhador de Pulitzer, inspirador de filme de Hollywood, de nome bonito, daquilo que poderia ser tão fácil de perceber para admirar, mas que nunca é visto realmente, A cor púrpura, da Alice Walker. E que li em um único dia, ansioso para terminar a trilogia que eu achei que eu mesmo criei, com ajuda dos correios. A voz, de novo, é dupla e é feminina, contada nas conversas entre duas irmãs, também separadas, como foram Belonísia e Bibiana, mas que quase não se escutaram de fato, ou se leram, apesar das cartas enviadas durante a vida. Mas para quem, mesmo assim, sempre se dirigiam, como se dirige a Deus em prece, esperando respostas de outras maneiras.

O mesmo sul norte-americano, do entre-guerras. O mesmo racismo, a mesma misoginia, insistindo em desgraçar uma dor que já transbordava e que não cabe em uma vida só. Por amor, por falta de amor, porque, como a Celie diz a Nettie, “a maldade mata”. O mesmo tempo demorado e arrastado, suado e na companhia das moscas e do calor, que engrandece a dor e os personagens, na sua comunhão agridoce. Aqui também parece haver algo mais profundo do que exatamente religião, mas que ainda assim sempre está lá, porque é do homem. Parece ser mais uma conexão, um descobrimento, quase uma revelação. Assim como também há uma África presente, ao fundo, nos três livros, real e também imaginária.

Mas é esse algo um tanto inefável que me fez perceber a conversa entre os livros, que os torna ainda mais espetaculares, pois contam para quem quiser ouvir, reservam sua eloquência em baixa frequência, sobre aquilo que é conhecido mas que, se não é experienciado, paira num nível muito intelectualizado e rarefeito. Você sente os livros, as palavras, o que retratam de mais verdadeiro e fundamental, no meio da beleza da ficção das ideias que impactam, que são feitas para isso. A cor está lá para todos verem, em plena luz do dia, mas é preciso parar para enxergar.

Há mais de dois anos, em minha última conversa neste blog, eu falei do Semprun, que teve sua própria dose de sofrimento, contar que para aqueles que não passaram pelo horror possam entender é preciso mais do que o fato contado, impassivelmente. Porque as pessoas não acreditam no tamanho da maldade, razão maior porque ela não termina.

Acabei minha peripécia rápido demais, mesclando nomes, histórias e dores, confundindo países de colonizações diferentes. Mas também aprendendo um pouco sobre como olhar para um passado de existências impertinentes, para encontrar as bonitezas de outros sofrimentos. De onde vem o parentesco da letra, que faz existir, com a terra, que faz crescer aquilo que não se aventava. Talvez seja a história deste mesmo mundo e um mapa para as formas de navegar por ele e encontrar abrigo.


 

sexta-feira, novembro 23, 2018

Sobre A Escrita e a Vida, de Jorge Semprun


Tanto que eu tive que parar para dormir. Um sono de morte, irresistível, até um tanto assustador. Que eu pensei que podia não acordar mais. Juro mesmo.

Mas é também que li resfriado. Não aquele que derruba completamente, mas que deixa o mundo à volta mais lento, sabe?

O suficiente pra se esforçar um pouco mais, cansar um tanto mais pra lá.

Aquele tantinho que faz transbordar. Lia A escrita ou a vida, e desde a primeira página percebi que o mínimo que podia fazer por ele era prestar muita atenção às palavras. Tentar ouvir, que é sinônimo de entender profundamente algo que o próprio autor duvidava ser possível. “Estátua de sal e de desesperança da memória”.

Semprún é daquela geração que descobriu o peso do testemunho. Geração que se vai, definitivamente. Como se vai o choque do horror que não deveria nunca deixar de nos atormentar. Deu no que deu, planeta em ebulição. Em que pior que esquecermos é duvidarmos da lembrança.

Se demorou a ele décadas para falar do horror e da sorte de ter sobrevivido, depois de sido atravessado pela morte, quando os seus semelhantes, seus fraternos comungados na dor, “iam embora pela chaminé”, levando consigo toda a vida, até dos pássaros que abandonaram a floresta enjoados com o cheiro da fumaça. Se é evidente que cada linha foi um desafio. Se é tanta tentativa de compreender que se sente angústia... Então o mínimo que podia fazer era também brigar com a linguagem junto. Suar um pouco.

A angústia de viver, mesclada com a vida irresoluta de sobreviver ao olhar de ódio, quando via as miradas vazias, de morte, de seus companheiros. De seu professor, Halbwachs, esvaindo em seus braços, apenas um pouco menos fracos - de Sorbonne, restou, ao final, com um pouco de dignidade, Baudelaire recordado à esmo. Do judeu de Budapeste que mesmo livre continuava a morrer, recitando a oração dos mortos. Tudo isso, descobriu Semprún, para ser contado, para ser memória que impacte, precisa ser elaborado com cuidado, com prosa, poesia e ficção. Para ser irresoluta e inelutavelmente real. E isso cansa tanto que demorou cinquenta anos para tomar forma.

Que faz ler de arroubo. A única maneira possível, sentindo ternura, tristeza, amor, assombro. Parando só para dormir a exaustão de buscar entender como a vida continua mesmo sem ter conhecido o Mal absoluto como ele.

Li uma edição da biblioteca, com suas próprias marcas e memórias plantadas, formando um enigma que nunca vai se reconstituir, mas que abre frestas construídas em cima de outras janelas descontínuas. Aprendi que aquela aluna, que uma pesquisa me mostra ser hoje professora no Rio, leu esse mesmo amontoado de páginas em algum momento no final da década de 1990. Pouco depois do amontoado deixar de existir em culpa e silêncio e tomar a forma de alerta. Uma história de acerto de contas, como a de Pepetela, a de André Gorz.

Descobri que foi um livro comprado com dinheiro de uma agência de pesquisa, que foi doado em outubro de 2000 pela antiga aluna, a futura professora, com uma letra de mão redonda, quase infantil, e que pela marginália (a lápis, marca de alguém que pensa na memória e no respeito, e que confia no leitor anônimo), mostrava estar interessada na escrita da morte e na preocupação dos intelectuais sobre a existência e a própria humanidade. Ao final, uma pequena lista conta Malraux, Kant (duas vezes), Char, Heidegger, Levinas, Primo Levi, Paulhan, Kafka. Era a cartografia do pensamento social e da filosofia francesa e alemã, vistas de outra perspectiva: a que estendia a palavra até a experiência desses autores, ou a experiência das pessoas que viviam e também liam esses autores, mesmo naqueles dias de ocupação e campos de concentração. Uma geração havia perecido na Grande Guerra. Outra estava sendo fraturada novamente, como não deixam esquecer a morte de Bloch, ou o suicídio de Benjamin. Ou mesmo a crueza de Heidegger, amargada por Hannah Arendt.

Percebo também que até a implementação desse eficiente e estéril sistema informatizado, da época que o carimbo ajudava a contar a biografia desse livro, desde sua doação, em 2000, foi retirado pela primeira vez em 2005. E mais cinco vezes depois disso, no intervalo de semanas (renovado por alguém que, diferente de mim, não leu em arroubo? Não, impossível, deve ter sido por alguém que tomava fôlego pra começar). Então ficou mais um longo tempo esquecido na estante, sendo emprestado de novo para alguém, que leu de uma vez só, em março de 2007 (lembro de março de 2007, onde estava, que fazia). Mais seis longos anos em pé, a contragosto de seu destino num colo, e foi retirado de novo em 2013, renovado por mais duas vezes por alguém que também precisava se preparar e se condicionar antes.

Fiquei aqui pensando na importância dessa memória, sobreposta por outras, para os dias de hoje. Os tempos sobrepostos, lembranças que ativam lembranças encadeadas pelas sensações e reações: o riso nervoso, talvez o choro, as alegrias impossíveis que desconcertam os ouvintes e suas expectativas.